Amigos. Para sempre! – João Nogueira

Vi o Carlos há pouco mais de um ano. Não o via desde o paleolítico. Vi-o por sorte. Calhou.

Estava diferente. Mas igualzinho. Mais barba, menos cabelo, mais brancas, cara de homem. Os mesmos olhos de miúdo, com o mundo todo lá dentro. No esquerdo, os continentes. No direito, o Oceano Pacífico e os Himalaias.

O Carlos faz parte de mim. Viaja comigo. Não o via desde o tempo em que as coisas custavam um conto e quinhentos.

O Carlos era o Che Guevara estampado numa camisola velha. Era o líder da nossa Revolução Cubana. Meia-dúzia de miúdos com meia-dúzia de pelos no buço, à procura de espiritualidade.

Demos um abraço de dez segundos. Aliás, demos um abraço com treze anos lá dentro. Sem cordas vocais. Só braços! Braços a baterem em costas! Rebobinámos as nossas vidas. Nesse abraço, coube tudo.

Quando se despediu de mim, há treze anos, disse-me até amanhã. A seguir, disse “ Hasta la victoria. Siempre!”

Desta vez disse que tínhamos de tomar um copo. A seguir, já eu estava de costas para ele, e ouço-o, cheio de genica “Hasta la victoria. Siempre!”

Sorri. Era o Carlos. Diferente. Mas igualzinho.

Os amigos dão-nos histórias. Mas, mais do que isso, os amigos são História.

Na minha, nas minhas dinastias, conquistas de Ceuta e chegadas para além da Taprobana, lá estão eles. Todos!  Perfilados, em fila indiana. O Zé, o Sérgio, o Luís, o Miguel, o Hugo, o Carlos, o João e os outros todos!

Os outros todos são aqueles amigos para toda a vida, com quem só partilhámos horas. Que valeram anos!

Uns, sortudos, na minha História, continuam só com cara de menino, porque não os vejo desde o tempo em que só víamos mamocas em cassetes de vídeo manhosas. (Espero que, nesse sentido, a vida deles tenha mudado. Para algo mais palpável.)

Juntos, descobrimos o caminho marítimos para a Índia. À nossa maneira!

Tenho saudades. Muitas! De tudo. Até dos silêncios que partilhávamos.

Um amigo não é família. Às vezes, é mais. Família não se escolhe. Um amigo, sim. É livre arbítrio, é escolha, é protestar em Tian’anmen se lhe apetecer, é fugir de Guantánamo, apesar de tudo.

Amigo não é sangue do mesmo sangue. Grande coisa!  Sou sangue do sangue da minha tia Sulamita, que só vi uma vez na vida.

Amigo é muito mais: é vida da mesma vida!

Tenho poucos. Ainda bem!

O mais antigo, o Miguel. Ensinou-me a sonhar através da palavra. Queria ser como o Maradona. Fazia relatos, enquanto jogava no meu quintal e calcava os malmequeres que o meu pai tinha acabado de regar. Pedia para eu lhe chamar “El Pibe”.

Noutro dia, sentei-me ao pé da garagem, que fazia de baliza. Lembrei-me dos estrondos de cada vez que era golo. Da minha mãe, a dizer para termos cuidado com os vasos, com os vidros, com o cão e com a buganvília, que era tão linda. Mas não tínhamos. Nenhum.

Tive saudades do Miguel. Daquele de cabelo aos caracóis, com nove anos e calção pelos joelhos. Sempre arranhados.

Escrevi-lhe isto, a propósito do Maradona. Que ele queria ser.

Para ti, “El Pibe”, meu amigo mais antigo, que me ensinaste a relatar a vida,

Diego Armando Maradona.1986. Com a mão esquerda, meteu a bola na baliza dos ingleses. Com a esquerda, não com a direita! Diego é Deus, Miguel. O Deus em quem acreditas. Maradona, tarreco, balofo, sem pinta de Marlon Brando, charuto à Tony Soprano, paleio à guna de filme de gangsters. Com barba ou sem ela, Don Diego era um irmão metralha a fugir às defesas. Diziam-lhe para parar em nome da lei. Diego escondia o tesouro no pé esquerdo, corria, ziguezagueava e chamava-lhes “Hijos di Puta”, ainda com as sirenes a tocar. As vezes que fossem precisas.
Diego foi culé, mas foi mais Napoli, ali ao pé da Camorra. O “dez” é Deus mas também é mafioso.
Com a mão, em julho de 1986, no México, debaixo de 40 graus, no Estádio Azteca, Diego, com aquele rabo gordo, foi um indígena que roubou a coroa à Rainha de Inglaterra e lhe cantou o “God stole the queen” ao ouvido.
“Argentina, Argentina, Argentina…”, Diego, larápio, 10 na camisola azul-celeste sempre por fora dos calções, corre como um desalmado para a linha final. Mais parece que quer esventrar o continente americano em segundos e aparecer, de repente, em Buenos Aires, ainda com os braços no ar.
Maradona, um ícone. Parvo, também. Ou sobretudo! Trinta e sete mil parafusos a menos! Bom rapaz, moreno, natural de Villa Fiorito. Cor preferida? A branca. Sempre a branca. Deus deu-lhe aquele pé esquerdo, não lhe podia dar cabeça.
Diego, o humano, por mais asneiras que faça, não conseguirá, nunca, escangalhar aquilo que ele, Maradona, o Deus, construiu.

Tu, Miguel, anónimo, és muito mais do que ele. Os sonhos não têm sempre de se concretizar. Têm é de ser sempre sonhados.

Um abraço. Dos grandes.

Senti-me bem!

Quando vi o Carlos parecia que tinha sido ontem que tinha estado com ele. Com o Miguel igual.

Mas não. Não foi.

O tempo é um trafulha. O tempo não sabe as horas! Nem os minutos!

“Anteontem”, fomos à comunhão solene, vestidos de anjinhos, muito branquinhos, a segurar uma vela, com laço e tudo. “Ontem”, falávamos da nossa primeira vez. Que fizemos isto e aquilo e que durou mais de uma hora. Somos homens, exagerámos! Todos!  A maratona durou, a ser simpático, minuto e meio.

“Hoje”, vemo-nos aqui e acolá. Quando calha. Se calhar!

Dizemos-lhe, a rir, que está mais gordo, que está a ficar careca e que temos de marcar um jantar. É o costume.

Mas “Ter” é um mau verbo. Não temos de fazer. “Ter” é obrigação. É para outras coisas. Por exemplo, temos de fazer a inspecção ao carro, temos de comer menos fritos, temos de pagar o IMI, temos de começar a fazer umas flexões e uns dorsais duas vezes por semana, temos de tirar uma certidão de registo criminal, se nos pedirem. Ter é para isso. Ter não é para os amigos.

A vida bifurcou-nos, reduziu-nos a lembranças. Desperdiçamo-nos.

A culpa é nossa por sermos órfãos uns dos outros, quando nos temos à mão de semear.

Um abraço. Havemos de marcar um jantar!

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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