Ana Beatriz

Ali naquele molhe sou eu, à espera de um barco que me leve a casa, onde há-de estar Ana de mesa posta para um jantar romântico à luz das velas, com um vestido ligeiro de que eu facilmente a livre para nos amarmos sem ser a condição de só nos voltarmos a ver daqui a seis meses.

Há-de já ter feito o jantar e depois ensaiado o gesto de inclinar suavemente a cabeça, para o lado que faz pender o cabelo quando me aproximo para beijar o pescoço.

Não a vejo há demasiado tempo, a não ser pela foto que guardo na carteira, de onde me sorri à espera de, quando nos voltarmos a ver, eu pela primeira vez reparar em algum detalhe que antes não me tinha prendido a atenção.

Recordo-me de um sinal nas costas que podia ser o epicentro de uma tatuagem em que, no lugar de um astro, teríamos um coração a ocupar o lugar ao centro do universo.

É alta, mas não tanto como eu e tem um sorriso que, de orelha a orelha, mede, pelo menos, o dobro da distância que vai da Terra à lua. Usa preferencialmente calças e tem o cabelo castanho, liso ou encaracolado, consoante para me agradar, quando sai, apenas o seque com a toalha.

Penso amiúde na circunstância de termo-nos conhecido num hospital. Era domingo e eu saía da enfermaria animado pela perspetiva de desagravamento do estado de saúde de uma amiga que fora operada à vesícula. Ana, que era enfermeira, acompanhada da filha mais velha de doze anos, preparava-se para regressar a casa, terminado um turno de doze horas, sem a última das quais não nos teríamos visto, dando azo a ter-se cruzado com outro homem que certamente jamais viria a sentir-se tão atraído por ela como eu.

Na barafunda dos corredores, sem saber para onde virar, pedi-lhe uma informação; e a partir dali não precisei de tornar de fazê-lo porque agora sempre que a vejo sei que é na sua direção.

Nos restantes dias dessa semana em que me desloquei de tarde ao hospital, vi-a sempre de bata imaculadamente branca e de sorriso disponível para toda a gente, como se confiasse nele, mais do que nas drogas que administrava aos doentes, para injetar aos pacientes a dose de confiança necessária à sua recuperação.

A partir dali, os acontecimentos sucederam-se a uma velocidade vertiginosa. Começámos a falar, saímos, namorámos e juntámo-nos, em menos tempo do que ela demorou a ponderar nos motivos que levaram à rutura do anterior relacionamento.

Sem ter conhecido o verdadeiro, a filha dela adotou-me como pai e volvidos meses estávamos a partilhar o mesmo teto, que era o do meu reduzido apartamento de duas assoalhadas, na periferia, mas à condição de nos mudarmos para um maior no mesmo bairro, mal regressasse da comissão de nove meses integrado na força de manutenção de paz que ia operar na República Centro Africana.

Só agora não é descabido revelar que sou tenente, nem que me encontro presentemente na Guiné, onde eu e um grupo de camaradas viemos dar, atravessando o Parque National do Haute Niger, para fugir aos guerrilheiros tribais de uma fação rival que nos mantinham aprisionados numa aldeia, após uma emboscada de que fomos alvo.

Tratámos do assunto junto de diplomatas portugueses que se deslocaram ao país agora e temos voo de regresso a Lisboa marcado para amanhã, embora eu preferisse viajar de navio.

Num desses navios de cruzeiro, muito altos, com vida noturna no convés e mais andares acima da linha de água, do que possíveis escalas que pensassem fazer entre Conakri e a doca de Santa Apolónia.

E como situações de exceção exigem medidas de exceção, sabendo da minha chegada, Ana larga as calças e põe um vestido para receber-me, de braços no ar a acenar como se me rendesse para desfrutar de si a meu bel prazer. Aquele vestido que guardava no roupeiro para uma ocasião especial: o dia em que nem que me surgisse na frente, de camuflado e cara esborratada, eu ia deixar de achá-la o maior espetáculo de mulher que tinha presenciado em toda a  minha vida.