Antes e depois. Uma vida a dois. – André Marques

Há sempre um antes e um depois na vida de cada um de nós. A vida é tão rara. E tão estúpida para ser levada a sério. Com todas as circunstâncias. Acima de todos os céus. Abaixo de todas as tempestades. Para viver, não basta existir. Para viver é preciso conhecer a arte de manejar as adversidades. Para viver é preciso conhecer o sabor da beleza e do cheiro da terra. Que pisamos diariamente. Aquela que por vezes renegamos. Destrutível. Como se fosse possível incubar as raízes. A vida é como é. Sem tirar nem pôr.

Assim como eu sou. Marido a tempo parcial. José António a tempo inteiro. Numa empresa qualquer. Que me consome por tudo e por nada. De noite. De dia. A todas as horas. Menos duas. Ou mais algumas. Que é quando estou com a Adelaide. A minha Senhora da perdição.

Algumas pessoas chamam-me de vigilante. Quando vão à loja onde trabalho. Que é todos os dias. Menos ao domingo. Esse, é para a Adelaide. Diz que é uma espécie de dia anormal. Porque estamos juntos e não nos vemos só para nos consumirmos. Mulheres, enfim.

Formado. Evoluído. Enriquecido. Dignificado. Eu. E mais uns quantos que trabalham no setor da segurança privada. Mal dormimos, é verdade. Mal nos conhecemos, outra vez verdade. A nós próprios, e aqueles que nos rodeiam. Saio tarde. E sou mal pago. E mal reconhecido.

A Adelaide é simpática. Tem dois palmos de testa, umas ancas de bradar aos céus, e um peito bastante sinuoso. Confesso que a amo mais por fora que por dentro. Homens, enfim. E no meio de tanta genuinidade, sempre lhe fui fiel, isto é, nunca me apeteceu meter-lhe os cornos.

Moramos em Sesimbra. Terra de falésias que se entusiasmam sobre o mar. Sesimbra. A Arrábida a perder de vista. Assim como o Capo Espichel. Um olhar. Paisagens únicas. E uns passeios bastante interessantes. Os que oferecemos um ao outro. Se a vida é um passeio, o meu é ao domingo. Como já referi.

A música soa a descanso. O teatro a movimento. A dança a expressão. E todas as recriações históricas. Avaliamos com extrema devoção a presença marcante de Teresa Salgueiro, Rui Veloso, ou Carlos do Carmo. Com vista para o Castelo de Sesimbra. Um espaço de muitas iniciativas.

O Castelo de Sesimbra encontra-se numa colina a 240m de altitude, com vista engraçada sobre o mar e a serra. Dominado por D. Afonso Henriques em 1165.  Local onde nos reunimos imensas vezes, para o amor, para o corpo sem roupa. De noite, com a lua como testemunha. De algo que só a nós nos pertence.

Quando percecionamos outro tipo de fome, lançamos os olhos à gastronomia ligada à pesca. Ao mar. Esmiuçamos o peixe e o marisco, e também os produtos do campo. Assim como a doçaria. O Espadarte é um dos principais manjares da gastronomia local. A popularidade dos anos 50.

A Adelaide está grávida de alguns meses. Tem a mania das náuseas. E dos desejos. E de outras traquinices. Devora com uma rapidez estonteante os belos dos bifes grelhados na brasa. Os mais procurados. Ou o peixe-espada preto, pescado há mais de duas décadas. Com ervilhas. Para sobremesa, a maça camoesa. Divina. A Adelaide, claro. A assemelhar-se à Churrasqueira da Vila, na freguesia de Santiago.

O meu nome é Adelaide. O meu organismo anda estupidamente alterado. Quer a nível anatómico, quer a nível funcional. Estou grávida. E, como tal, os meus seios estão bastante alterados, assim como a silhueta do abdómen. O meu. Em prol da criancinha. Deve nascer lá para fins de Fevereiro. Maldita que me tem atrofiado todo o sistema. E o José António adora. Diz que as mulheres têm obrigatoriamente de passar por isto. Enfim. Esquece-se que tenho os mamilos sensíveis, não suporto qualquer tipo de carícia. Engordei mais de nove quilos. O líquido amniótico.

Por vezes, sinto-me desinteressante. À medida que a gravidez avança, desloco a parte superior do tronco e a cabeça para trás, de forma a compensar o deslocamento do centro da gravidade. Provoca-me dores, principalmente na zona lombar. E para terminar, abro os pés para fora, separo as pernas. Estou linda. Falsa.

A rijeza da maternidade é superior a todas as leis da natureza. Acredito que a fundamental tarefa do ser humano nesta vida é dar à luz a si mesmo. Ser mãe é admitir novas escolhas.  É garantir o amor. E muito. É dar um novo sentido ao amor. Ser mãe é ser mulher a tempo inteiro, e ainda ter tempo suficiente para oferecer carinho àqueles que ama.

Serena. Realizada. Uma vitalidade que desconhecia. Nunca fui de chorar. Nunca fui de ter crises existenciais. Nunca fui de me aborrecer com facilidade. Apenas sinto angustia. Angustia por não saber o que vai acontecer.

Falta-me o tempo. Ou faltam-me as palavras. Ambiciono a estabilidade financeira. Um qualquer plano de vida. 500 euros. E chega. Uma boa meta, julgo. 250 para o essencial. E o resto para as futilidades da vida. Tudo o que sobra é amor.

A seguir quero uma casa. Melhor. Com paredes. E um teto. O bastante espaço para os meus conseguirem ser felizes. Mais ainda. Uma casa com vista para os sonhos todos. Uma casa com divisões. Porque a nossa vida é feita de contas de dividir. Até as tristezas dividimos.

De resto, sou um homem feliz. Meramente feliz. A ler o meu Eça de Queiroz. Ou o meu querido Paul Auster. O perfeito é a vida. O imperfeito aquilo que se vai perdendo dela. E o melhor é mesmo o agora. Sempre.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
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