Ao melhor Pai-Avô do Mundo

     Adoro rir, não é sorrir, é mesmo rir à gargalhada até precisar de dar à bomba porque já estou que nem posso. Como sou de extremos e exageros em tudo o que gosto, às vezes dá-me para o lado oposto…Apetecer-me chorar, chorar baba e ranho até precisar de ir beber água porque o xixi já não sai, e quando assim é, vou ouvir os meus discos de vinil ou “chafurdar” no passado. Sim…chafurdar…mudar de país com a casa às costas, acumuladora como sou e ter caixas e caixotes até ao teto cheios de memórias.

     Não é fácil…é coisa para se partirem umas duas ou três unhas no percurso, isso vos garanto. Mas depois chega o momento, a Epifania…sim, a minha vizinha de cima que se mudou há uma semana. Mentira, alcanço mesmo em pleno estado lúcido a perfeita aparição divina….Um monte de papéis! Alguns já amarelados do tempo (ou xixi de gato), outros mal dobrados ou gastos…as minha memórias, os meus tesouros, alguns que me fazem rir, como versões modernas de música popular portuguesa em que fazia uma adaptação da letra “a la Sofia”, outros, tesourinhos deprimentes que foram o meu amparo enquanto crescia.

     E depois existem aqueles papéis, aqueles rascunhos preciosos que me transportam para perto daqueles que perdi. Numa dessas caixas encontrei algo que nunca esqueço, mas que ao reler, me faz relembrar realmente quão importantes são os avós. Os avós têm na nossa vida uma influência diria que brutal. Alguns pela negativa, outros pela positiva, mas marcam-nos quando presentes. São como pais com menos filtros, com um sentido de responsabilidade autoritária menor. O meu avô materno teve duplo papel. Foi avô, mas foi também pai.

     Tendo o meu pai partido subitamente quando tinha 14 anos, a minha adolescência foi meio negra…revoltada…era aquela típica pergunta: Porquê eu? Uma revolta com o mundo, um porquê que não encontrava resposta mas…lá estava ele, a ser pai sem que desse por isso…o meu avô. Homem inteligente, com uma capacidade de compreensão e visão para além do comum, vindo de uma era que ainda não nasceu. De uma sabedoria e uma vaidade tão próprias, uma força de vida e uma vontade de ser que ainda hoje me inspiram. Não vou falar dos seus feitos, que foram muitos e não há espaço para tanto, mas gostaria de partilhar algo que sei que o tocou.

     Vivemos o nosso dia-a-dia a correr, sempre de um lado para o outro, com tempo contado e facilmente nos esquecemos de dizer às pessoas que amamos, o quanto as estimamos. Infelizmente, não tive oportunidade de dizer ao meu pai o quanto amava, o quanto ele era importante para mim. Digo-lhe hoje em pensamento a falta que me faz a sua presença, apesar de saber que parte dele vive em mim e que me acompanha na sua nova forma, sempre, sem nunca se ausentar.

     Quanto mais crescia (em altura e largura), mais me apercebia daquele pai-avô fantástico que tinha. Tínhamos muito em comum, na nossa forma de ser, de estar, ambos reservados e taurinos puros com uma teimosia que gosto de chamar perseverança…mas no fundo é pura teimosia, só para sermos do contra. Por isso mesmo tinha de expressar da melhor forma que consigo, escrevendo, o que não podia deixar por dizer. Espero que o que partilho hoje convosco vos inspire e se transforme num abraço, num sorriso, num telefonema ou mesmo numa carta para aqueles que merecem um amo-te.

Agosto 2009

Avô Tavo

                Há palavras que o tempo encurta e outras cuja emoção afoga.

                Por não querer que nada fique por dizer e porque é para mim importante transmiti-lo, escrevo esta carta ao homem mais importante que na minha vida existe.

                Por infelicidade prematura de ter perdido um pai, ganhei outro, que desde sempre tem sido uma fonte de sabedoria, sensatez, exemplo, esperança e oportunidade.

                O avô foi desde cedo a minha fonte de apoio, tendo sempre aconselhado, orientado e apoiado as escolhas que fui fazendo, e tendo tornado possíveis muitos confortos que de outra forma não teria tido.

                A sua vontade de viver cada dia em pleno e a sua força para contrariar qualquer adversidade que surja são notáveis e uma verdadeira fonte de inspiração e força para o futuro.

                Sempre harmonioso e sensato nas palavras, em muito me tem guiado.

                Escrevo estas palavras para lhe agradecer tudo o que por mim tem feito. Escrevo para pedir desculpa pelas ausências, por não ser tão presente como deveria ser, pelos momentos em que devia ter estado e não estive, pelos telefonemas que não fiz, pelas visitas que não concretizei.

                Escrevo para que saiba que o meu maior orgulho é ser sua neta, sangue do seu sangue.

                Escrevo porque às vezes sentimos tanto e gostamos tanto mas damo-lo como assumido e não nos preocupamos em mostrá-lo ou dizê-lo, e um dia mais tarde, lamentamos o que não dissemos ou fizemos e que era tão importante para nós.

                Por não querer que isso aconteça consigo e porque sei o que dói não ter tido oportunidade de dizer ao meu pai o quanto o amava, o quanto ele era importante para mim e me ter despedido, escrevo estas palavras. Não pretendo com estas palavras passar a ideia de despedida, mas quero que saiba o quanto o amo e prezo.

                Se me casasse seria no seu braço que chegaria ao altar e espero ter oportunidade de lhe apresentar mais um bisneto e espero mostrar-me o meu tão esperado diploma.

                Escrevo para que saiba que, apesar de não o dizer, o amo muito, que é a pessoa mais importante que na minha vida existe e que me angustia saber que possa passar mal e é importante que o saiba.

                Espero e conto que nos acompanhe opor muitos mais anos, até porque conto com a celebração de um aniversário centenário, e que esteja presente nas nossas vidas para sempre, a cada dia e a cada segundo que passa.

                Sei que com esta carta ganhei o privilégio que poucos têm. O de não deixar ficar nada por dizer e prefiro fazê-lo, mesmo que cedo, do que nunca.

                Que continue a ensinar-me, e julgo que falarei pelos restantes netos, e que continue a presentear-me com essa alegria, boa disposição, garra e imensa sabedoria.

                Agradeço-lhe de coração o apoio que tem dado sempre à minha mãe, a quem a vida nem sempre sorri.

              Um beijo muito grande

Neta Sofia”

     Recebi uma carta de resposta, que está religiosamente guardada no livro que escreveu sobre a sua vida, um livro de capa rija vermelha. Irei partilhá-la, quando o coração me permitir revisitar as suas palavras.

     Partiu em Junho de 2010, na noite de Santo António, com 96 anos.

     Não há um dia que passe em que não sinta a sua falta e ao mesmo tempo a sua presença.