Ao meu melhor amigo. O Zé!

O Zé casa no sábado. O Zé é o meu melhor amigo. É alto. Mais ou menos magro. Encolhe um bocadinho a barriga e passa a ser magro. Quando deita o ar todo cá para fora é só mais ou menos magro. O Zé tem as sessenta mil almas das bancadas da Luz a gritar golo dentro do peito. Mais o terceiro anel. Cabe lá tudo. Ao molhe. Mas cabe!

O Zé tem dois olhos. Como toda a gente. Só que os dele são diferentes. Castanhos. Simples. Mas diferentes. Pequenos. Com pestanas por cima. Mas diferentes. Os olhos do Zé não servem só para ver. Era o que faltava! O Zé tem duas janelas nos olhos. Uma em cada um. Abre-lhes a persiana até cima e mostra aquilo que cada um de nós mais gosta de ver. Lá, nos olhos, tem sempre uma peça de teatro. E nós, que não temos, olhamos. E ouvimos. E rimos. E batemos palmas.

O Zé não tem nada a ver comigo. O Zé é o meu melhor amigo. Veste cor-de-laranja. E amarelo. E cor-de-rosa. É homem para isso. Eu visto azul. Escuro. Às vezes cinzento. Não sou homem para mais. O Zé é o meu melhor amigo. É Benfica. Doente. Eu sou Porto. Doente. O Zé vai sempre a sítios diferentes. Eu vou sempre aos mesmos. O Zé tem Deus. Eu não. Quem me dera! O Zé diz palavras que rimam com Ramalho. O Zé foi à tropa. Eu não. O Zé já viu a guerra. O exército do inimigo andou aos tiros dentro dele. E levou-lhe um homem bom. Do sangue dele. E o Zé tem Deus. Eu não! E o Zé já viu a guerra. E eu nunca vi fantasmas.

O Zé não é silêncio. Nem quando é. Há sempre barulho no sítio onde está. E aí, no sítio onde ele está, há sempre paz. E risos. E gente à volta.

O Zé é o meu melhor amigo. Porque sim. Não é sangue do meu sangue. É sangue do sangue dos dele. O sangue vale o que vale. Às vezes muito. Às vezes pouco. É meu amigo. E isso constrói-se. E isso dá mais trabalho. O sangue não. Está logo ali à mão. Logo ali ao pé. Um amigo não. Dá que fazer. São precisas histórias. E caminho. E viagens. Não à China. Não ao Japão. Às vezes nem se sai do sítio. Às vezes nem se chega ao destino. Mas viaja-se. Na viagem um do outro. O Zé fundou comigo as ruas onde vivemos. Tomámos a Bastilha. Expulsámos Visigodos. Passámos por cima dos Vândalos. Gritámos Revolução. E parimos o país que somos. E o que somos vê-se. Não com os olhos. Mas vê-se. Ao longe.

O Zé é malandro. Casa com a Marta no sábado. Gosta muito dela. Ela vive-lhe em todos os andares. Da cave às águas-furtadas da casa que é o Zé, a Marta está lá. A rir-se para ele. E ele para ela.
Há uns anos, a um sábado, o Zé acordou mais cedo que a Marta. E foi ao quiosque. Viu os números da lotaria do dia anterior. A seguir conferiu. Tinha zero. Virou costas. Arrependeu-se. Virou costas outra vez. Jogou nos números que tinham saído no dia anterior. Chegou a casa. Rasgou o talão que a Marta tinha no porta-moedas. Pôs lá o talão com os números vencedores do dia anterior. A seguir acordou a Marta. Que foi ver os números que tinham saído. Olhou para a televisão. Olhou para o talão. Vinte e sete. Trinta e quatro. Quarenta. Quatro. Dezassete. Treze. Dezanove. Estavam lá todos. A Marta olhou dez vezes para a televisão. Outras dez para o talão. Tinha ganho um ror de milhares de euros. Cresceu-lhe um rio nos olhos. Os olhos alumiaram. Mas não. Era o Zé a ser malandro. Era a Marta a chamar-lhe estapor.

O Zé tem as costas tortas mais direitas do mundo. É de Soutelo. E é de todos aqueles em quem ele vive. E de todos aqueles que vivem nele. Só tem Pátria quem tem amigos. Deus é isso. Uma noite de Verão. Uma mesa com gente. Grilos a cantar. Um refresco. Caras coradas. Cheiro a praia nos braços. E gente a rir. E gente que se pertence. Não pelo sangue. Pelo olhar. Deus é isso. E desse Deus não há quem seja ateu.

Vou estar cada vez menos com o Zé. Sou nómada. Parto não tarda. O barco que sou está quase a apitar. Há-de apitar muito alto. Para avisar que vou. Para me avisar que vou. Um homem precisa de estremecer antes de partir. Até quando vai para o porto que escolheu.
Levo o meu melhor amigo comigo. Sempre. Não ao lado. Mas em todo o lado. O Zé. Que casa sábado. Que jogou comigo em estádios de terra batida. Era defesa. Eu guarda-redes. Quando ele falhava, estava lá eu. Quando eu falhava, estava lá ele. Como hoje. Como sempre.

É o Zé. O meu melhor amigo.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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