Aqui d’el Rei, Conjurados ao poder!

A chama de uma vela a tremeluzir, era o único indício de luz visível no quarto, a quem olhasse do pátio exterior onde se ouvia o ruído dos soldados a pé que vigiavam o perímetro interior delimitado pelos muros do palácio, algures no Alentejo. Era uma cercadura alta, caiada de branco para não se confundir, vista de longe, com o imenso arvoredo que guardava no seu interior. Sentado na beira da cama de dossel, que já servira de cenário a muitas noites de amor com a futura rainha, aquele a quem haveriam de chamar D. Afonso IV, o rei Restaurador, meditava sobre as consequências da rebelião, na forma como lidaria com ela, no dia seguinte, o regente da coroa do reino de Castela, em Lisboa, mal tomasse conhecimento de que um grupo de conjurados tentava pela lei do mais forte pôr termo à ingerência estrangeira em Portugal que durava há longuíssimos sessenta anos.

O Duque de Bragança estava consciente de que eram inúmeros os problemas como que o futuro rei teria que lidar e isso deixava-o preocupado. Estavam prestes a terminar, os maus anos da governação que todos os portugueses haviam presenciado e dos quais estavam fartos, levados a cabo sucessivamente por três reis que tentavam em grandiosidade suplantar o seu antecessor, e cuja principal preocupação, no que ao nosso lado da fronteira dizia respeito, era empobrecer o reino tanto à custa da criação de novos impostos, como do aumento das taxas doa anteriores, graças ao que haveriam de deixar de herança a um povo descrente, um país onde, à custa deles que mal tinham para sobreviver, vivia bem uma minoria que tendo bastante mais do que necessitava, pela falta de nobreza de caráter demonstrada, pouco ou nada se importava com o rumo que a vida deles pudesse tomar.

Ao Clero, sobretudo por influência dos Jesuítas, bastou ver ameaçados os seus privilégios para tomar uma atitude.  Uns anos antes da revolução, uma carta régia a estabelecer que devia ser tomado à força um empréstimo, junto da população, destinado a criar um fundo que permitisse proteger os lugares sob o domínio português ameaçados no estrangeiro, provocou a reação do Clero. Sem a aprovação das Cortes, temendo que a medida pudesse ser chumbada, pela primeira vez a Igreja deixava de estar isenta do pagamento e isso gerou uma forte contestação, juntando-se a dos fidalgos e nobres representantes do Vaticano à popular que há muito se ouvia nas ruas, pois é sabido que a classe mais desfavorecida, em cujos protestos ecoam os pensamentos dos que se lhes gostariam de juntar mas por medo optam por ficar em casa, é sempre, nesta como noutras situações, a primeira a sentir os efeitos nefastos da crise.

De ânimo ao rubro, toda a gente era finalmente da opinião de que se deviam expulsar as forças estrangeiras, e acabar com este regime de monarquia dualista, devolvendo aos portugueses o poder de decidir o seu futuro, com a maior urgência possível, já que a ocupação durava há tempo suficiente para que até quem antes não acreditava em Deus achar agora que podia contar com a ajuda divina se contribuísse para pôr-lhe fim.

Estando a sociedade em geral descontente, repartida em Aristocracia, Clero e Povo, mas unida no mesmo desejo, era claro que a ninguém interessava manter uma subserviência que, na pior das hipóteses, originaria a união política dos Estados ibéricos, o que em termos práticos para nós deste lado de nada serviria, pois deslocaria para umas centenas de quilómetros a leste de Lisboa, o centro das decisões no que aos portugueses diriam respeito, tão longe que daquele planalto onde se situa Madrid, talvez nem do eco que elas viessem a produzir alguma vez se ouvisse falar.

Já sob o governo instituído pelo Conde-Duque de Olivares, de uma prima sua coirmã do rei D. Filipe III, viúva do Duque de Mântua, acentuaram-se os protestos. Dá-se um novo aumento no imposto de Siza e cria-se o chamado imposto do Real de Água, o que fez com que, por ser extensível à totalidade do reino, a contestação chegasse finalmente aos territórios ultramarinos.

Na África rural, habituados, desde há muito, a lidar com as revoltas esporádicas dos negros, os fazendeiros donos das explorações de café e cacau, tardaram a reagir ao que consideram ser uma afronta, talvez temendo que, para aplacar a sua fúria, o governador ordenasse usarem contra si a mesma técnica com que, para dominar os insubordinados nas suas terras, eles logravam alcançar os seus intentos, e que consistia nada mais, nada menos do que em conseguir pela força do chicote e da ameaça do cabresto vencer quem reconheciam deter a força da razão. Contudo, tardaram mas organizaram-se e, em lugar de um, nomearam até dois emissários que mandariam com missivas urgentes a Lisboa a fim de apresentarem queixa sobre os motivos que os uniam, mas fazendo-os viajar separadamente com receio de que o navio em que ambos navegassem naufragasse a meio do caminho e com eles se afundassem os propósitos que consideravam justos.

Renitente em aceitar o poder diretamente das mãos do líder da revolta, o nome do fundador da dinastia de Bragança era, depois de muito terem pensado, o único citado para exercer o poder real depois de restaurado o poder, como se fosse essa a única coisa verdadeiramente importante e que importava reter, das reuniões secretas onde compareciam em grande número os seus apoiantes. Algumas foram convocadas para diferentes pontos do país, a fim de mobilizar as massas e também para debaterem as alternativas que havia numa altura em que o futuro rei manifestava o desejo de em todo o processo manter uma posição de neutralidade. Numa realizada na comarca de Vila Real, feita à revelia das autoridades locais, apareceram delegações vindas de toda a parte e não estranhou terem sido as que vinham de mais longe as que demoraram mais tempo a chegar, como se pelo caminho houvessem parado em todos os lugares e lugarejos perscrutando qualquer ameaça ou andassem simplesmente à procura de angariar voluntários para a causa. Uma das mais fervorosas adeptas não o escondia de ninguém, era a nobre de ascendência espanhola D. Luísa de Gusmão, casada com o futuro Rei D. João IV, que fez o que estava ao seu alcance para o marido mudar de opinião relativamente ao desejo que manifestava de esperar pela altura em que o país estivesse preparado para dar a reviravolta que voltaria a colocá-lo na senda do progresso. Esposa-amante, e mãe de um filho-varão que não roubaria protagonismo na História de Portugal ao pai, viria ela própria a revelar-se decisiva na aceitação da incumbência de governar o reino por parte do marido, sem a qual os revolucionários não estariam na disposição de avançar.

Noutra realizada em Évora e convocada pelo mesmo grupo de notáveis, demoraram mais tempo a chegar os representantes que fizeram o trajeto mais curto, talvez porque aos outros já bastassem os apoios que tinham angariado e por isso não perdessem tanto tempo ou andassem agora estes à procura, pelas serras e serranias, montes e vales, de alguém credível que pudessem sugerir em alternativa ao primeiro nome em que pensaram para suceder ao futuro rei no caso de permanecer a recusa, e que era o de seu irmão o infante D. Duarte, pois alguém os tinha alertado para a impossibilitado de este se poder ausentar da Alemanha após ter jurado fidelidade ao Imperador germano Fernando III, a quem os seus serviços braçais oferecera em troca de fama e glória obtida nos campos de batalha.

Homem afável e educado, D. Afonso IV tinha a fama de ser justo, e este era o único aspeto que desagradava aos que o defendiam para exercer o reinado, uma vez que em sua opinião ser justo no castigo a aplicar, quer aos espanhóis, quer aos traidores à Pátria que os apoiaram, era fazê-los sofrer muito menos do que, por causa daquilo que a todos prejudicaram, muito justamente mereciam.

A esses que usurparam o poder, diziam que devia ser atribuída a pena de morte. E um dos que mais a mereciam era, no seu entender, Miguel de Vasconcelos, antigo escrivão da Fazendo da Reino que por nomeação direta da vice-Rainha, a Duquesa de Mântua, ascendeu à categoria de Secretário de Estado, função através da qual era frequentemente acusado de favorecimento de Castela no âmbito das relações que mantinha com o nosso país. Haveriam as suas ações de cair nas boas graças dos castelhanos mas não nas dos seus conterrâneos que reservaram para ele um final infeliz, atirando-lhe o corpo sem vida pela janela do palácio real no dia da tomada do poder, ao povo que exigia justiça reunido defronte no Paço da Ribeira.

Quando isto aconteceu, foi o culminar dos motins populares e dos levantamentos em massa que ocorreram por todo o país, com maior incidência nos últimos anos da presença de Castela. Foi o ruir pela base da torre de babel iniciada pelo Conde-Duque de Olivares, o mais influente ministro da Corte do Rei D. Filipe IV, que ansiava sob o lema da “união dos pequenos Estados ibéricos”, criar um potentado que lhe permitisse em melhores condições enfrentar a França na Guerra dos Trinta Anos, que fora desencadeada não só por motivos religiosos envolvendo um número considerável de países da Europa ocidental e provocou uma onda de devastação. Foi, afinal de contas, o epílogo das tentativas vãs de querer juntar sob o mesmo comando um exército de homens com um contingente português, destinado a lutar não só contra as forças estrangeiras aquém Pirinéus, mas também contra os denominados insurretos que sonhavam com a ideia de levar por diante a criação de um estado autónomo e inteiramente livre na região da Catalunha.

Pelas 9 horas da manhã de sábado do dia 1 de Dezembro de 1640, que nasceu sob uma atmosfera clara e pautada pela serenidade, prevalecente no seio dos elementos do Clero que recuperavam privilégios de que os tinham desapossado, movidos pelo anseio da liberdade, os fidalgos que tomaram de assalto o paço real, de cuja janela mais alta arremessaram à multidão em chamas o corpo do lacaio Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos, eram os mesmos que horas antes até ponderaram desistir por se acharem insuficientes para levar de vencida a guarnição castelhana de guarda no forte contíguo ao palácio, que haveria de acudir aos alabardeiros ao menor sinal de perigo.

Com a ajuda dos populares, o edifício foi ocupado e dali foi feito um comunicado que declarava que estava restaurada a independência em Portugal.

Com a revolução consumada, chamaram-lhes conjurados mas o que estes homens e mulheres foram foi heróis por terem tido a coragem de cumprir um sonho. Tinham-se confessado a um Padre e alguns, prevendo uma fatalidade que seria saírem derrotados, tinham feito testamento, o que era absolutamente desnecessário, uma vez que o seu maior legado não foi material e permanece intacto até aos nossos dias, visível no facto de continuarem invioláveis as nossas fronteiras, que no caso de Portugal e enquanto tiver cidadãos espalhados pelos quatro cantos do mundo, jamais circunscrever-se-ão ao espaço onde acaba a jurisdição nacional.