“ Armando Bernardo Cutileiro “ – A Prisão

Continuação…

A obra implicou a utilização de vastos meios, o dispêndio de muitas horas de trabalho com recurso a maquinaria de custo superior ao do valor-hora pago aos operários envolvidos, na sua maioria analfabeto, mas profundos conhecedores das técnicas de construção capazes de fazê-lo manter-se de pé, até daqui a uns ser anos ser vendido a uma entidade particular que o transforme numa rentável unidade hoteleira.

Pela mão de trabalhadores especializados e semiqualificados na arte de desenrascar o que os primeiros não foram capazes de fazer, o complexo foi erguido e do conjunto de edifícios pintados de branco, sobressaía uma torre que emergia duma espécie de claustro, a paredes-meias com um pátio para a atividade física dos reclusos, cercado por um muro alto, como a paliçada de uma aldeia da qual importe impedir que os seus moradores possam sair de lá de férias.

No período em que durou a construção do estabelecimento prisional, o meu pai foi um dos que, para tomar conta do material à noite, chegou a ter de lá dormir. Tornou-se especialista em assentar tijolo e betumar paredes que haveriam de durar como as dos castelos. Como ele, centenas de trabalhadores desempregados e sem formação específica, fixaram-se na pequena vila. Deslocavam-se individualmente ou em grupo, dos centros urbanos próximos como Lisboa, arrastando as famílias para viverem em casebres privados de conforto que mais não eram do que, num Estado que se queria novo, lugares de habitação menos prováveis do que barracas.

O meu pai era um homem corpulento, chamava-se Manuel, mas nem engalanado na roupa de sair ao domingo e com óculos de hastes finas, tinha aquele ar de intelectual a quem confere estatuto trocar as vogais e a meio de Manoel acrescentar um n. Pelo contrário, tinha a aparência de um estivador, dum homem possante tanto capaz de desbastar um terreno de silvas para cultivo, como carregar uma saca de cinquenta quilos de batatas às costas, a despeito do esforço de ter passado a tarde inteira a apanhá-las, à torreira do sol.

Teve a ideia de pôr de pé uma casita aonde a minha mãe pudesse habitar. Fora antes dela, um mês para se ambientar, e um dia nos copos, à conversa com os amigos, chegou à conclusão que sempre era melhor construir o seu próprio telheiro, do que viver numa casota à beira de uma estrada poeirenta, tão pequena quanto era legítimo pensar que o seriam os sonhos dos que nela habitavam.

Disponibilizaram-lha pensando que moraria sozinho. Era velha, antiga na ótica dum consultor imobiliário, e, a par de obras de restauro no telhado, necessitava urgentemente duma pintura na fachada que lhe conferisse o ar acolhedor duma casa aonde, a quem morasse pela vizinhança, desse vontade de entrar. Embora de construção sólida, apresentava-se em mau estado, e de nada valia em seu louvor gabar a solidez, se, apesar das belíssimas janelas de arcada com parapeito de granito, não possuía nas paredes instalação eléctrica, nem canalização que transportasse a água, nem sequer a partir dum poço que houvesse nas redondezas. Foi à custa dela que formei o meu conceito de casa inacabada, de inúmeras vezes ter ouvido a minha mãe queixar-se de que precisava de ser remodelada. Um trabalho exaustivo, tão exaustivo que, se optasse por aquela empreitada, ao meu pai não sobraria tempo nem energia para manter um emprego fora de casa e tão complicado que face às dificuldades talvez concluísse ser preferível derrubar aquela e, apontando a novas fundações, erigir uma nova no mesmo lugar.

Sem meios para concretizar o sonho, via em certa ocasiões o meu pai mergulhado em tristeza e à mãe não restou alternativa a ter de conformar-se em retirar proveito do facto de viver numa casota, que compensava o estado de degradação com vista privilegiada para uma serra verdejante, de cujo cume talvez quem nos avistasse invejasse o facto de vivermos num vale florido, comigo entretido a brincar remexendo pedras e paus, movendo-os como peças num jogo de dominó, acreditando que colocados numa perspetiva diferente pudessem vir a assemelhar-se aos brinquedos que nunca tive.

(Continua)