“Armando Bernardo Cutileiro “– Alcoentre à época

(CONTINUAÇÃO)

Alcoentre era no período anterior à guerra, um local remoto, num país remoto medido à escala europeia, aonde nada se passava e nem de passagem, passava algum líder europeu a sondar, o lado em que nos posicionaríamos, quando eclodisse o conflito que haveria de terminar com a vitória dos confortavelmente instalados no lado aliado.

Fundada no Séc. X, Alcoentre recebeu um nome árabe que designava “a pequena ponte”. Revelou-se um ato premonitório. Por escassez de água, nunca aquela precisou de ser aumentada e no leito de rio onde antes corria muita água, hoje mesmo no inverno reduzido a um fio, não falta quem o veja transformado em ribeiro.

Era ainda no Séc. XX, uma vila com poucos habitantes e outros tantos motivos de interesse, que na verdade não iam além da Igreja matriz, a dominar um largo, chamado terreiro, no qual, à saída da missa, sobretudo ao domingo, os locais gostavam de ficar demoradamente à conversa, no ensejo de soltar a língua por terem sido, durante a homilia, forçados pelo pároco à penitência através do voto de silêncio.

Defronte dela, colocaram uns bancos de jardim e, postado ao centro, um coreto que servia de palco principal para apresentação dos Ranchos convidados a atuar em setembro, na festa anual ao Senhor Jesus dos Aflitos. Pelo meio, havia muitas pequenas árvores, duma espécie que era do tamanho dum género de sobreiro autóctone, à sombra das quais, enquanto as crianças brincavam distraídas, nunca os mais velhos se distraíam do facto de comentar a vida alheia, tecendo opiniões como se delas dependesse saber, de que lado da barricada se posicionariam, se entre elas no futuro viesse a haver conflito.

Fora isso, a vida decorria de forma pacata, em perfeita harmonia, segundo uma ordem preestabelecida em que os homens eram maioritariamente assalariados agrícolas, trabalhavam fora e davam trabalho aos taberneiros, que se atreviam a pô-los fora se se portassem indevidamente ou acumulassem uma dívida elevada, que ameaçasse fazer ruir o pacto de estabilidade pró défice, que era de 2 % de dívidas incobráveis, branco ou tinto.

No centro da vila, as casas eram baixas. Não distante da taberna frequentada pelo meu pai, via-se o posto da GNR, que se previa pequeno para albergar o contingente de militares previsto para chegar mal concluíssem as obras da prisão, que haveriam de ser inauguradas com fogo de artifício, como se se assinalasse a entrada do verão sucedendo a uma primavera de temperaturas não superiores a dez graus.

Uma particularidade da terra era a estrada que vinha de Lisboa ser a mesma que levava ao Porto, atravessando o centro da vila em linha reta, como um comboio de alta velocidade que parasse para entrar e sair gente na estação que não chegou a ser feita. Sinal da importância dada, era a existência dum pelourinho, de igual aos que, na época áurea dos descobrimentos, sinalizando um novo território anexado à Coroa, representavam a autoridade dum poder instituído sobre os habitantes locais.

Não obedeceu a nenhum plano de pormenor, o projeto de crescimento da povoação, que cresceu em sentido horizontal, a partir do largo da Igreja, que tanto podia ser também o largo do coreto, como do pelourinho ou da botica aonde se vendiam as drogas que combatiam todas as enfermidades. A terra crescera desordenada, roubando hectares de cultivo aos donos das grandes quintas. As ruas eram bem calcetadas, contudo, estreitas, e nas que tinham largura suficiente, sinal de que em cima delas a carga seguia bem-acondicionada, era quando sobrava espaço para passarem duas carroças sem derrubarem a carga uma da outra.

No fundo, Alcoentre era um local aprazível para viver, embora oferecendo poucas oportunidades de trabalho, sobretudo dirigidas aos jovens que não buscavam subsistir da lavoura, mas cedo eram convidados a deixar a escola para laborar no campo, que sempre era preferível aprender com os pais a arte do ofício, do que mais tarde aprenderem a desenrascar-se ceifando em seara alheia, como fazia a minha mãe, que cedo saltava da cama e ia cultivar numa horta alugada, alguns dos vegetais que trazia para casa, ajudando à nossa subsistência.

Rodeados de uma natureza favorável ao meu crescimento saudável, levávamos uma vida pacata coexistindo pacificamente com os vizinhos de quem eramos amigos. Vivíamos remediados e assim foi até ao dia de conclusão das obras do estabelecimento prisional, quando ao meu pai não restou alternativa à de ter de virar-nos costas, temporariamente, para voltar a Lisboa, não em passeio, mas em busca de trabalho.

(CONTINUA)