“Armando Bernardo Cutileiro” – Casa nova, vida nova

Mal comparando com esta, que parecia a casa dum assalariado pobre, aquela aonde vivíamos em Alcoentre bem podia ser a dum fazendeiro rico, dono duma tão grande extensão de terras, que nem numa charrete puxada por dois cavalos a galope, conseguiríamos percorrê-las duma ponta à outra num dia. Tinha paredes altas e descoloridas como o muro de uma prisão na qual um ser humano está privado de liberdade, e vista de fora era pouco maior do que uma cela aonde atravancados dormiam quatro homens enfiados em beliches.

Encaminhámo-nos para lá, logo à saída da camioneta, transportando tão poucos pertences que, não fosse uma cama desmanchada presa por cordas, pensariam que voltaríamos para dormir em Alcoentre que lá é que ficava a nossa casa.

Não me recordava do meu pai tão magro. Perdera peso, mas não a agilidade a julgar pela forma como auxiliou a minha mãe a descer da camioneta, nem nenhuma dos seus atributos mentais, embora provasse ligeiramente o contrário, com a desculpa de que passaria pelo meu irmão e por mim na rua mal nos reconhecendo, de tal forma nos achava diferentes em relação à última vez em que nos vira. Como de costume, mostrou-se atencioso e perguntou se estávamos bem. Depois mostrou-se agradado por me ver mais alto e a ele, ainda a fungar duma constipação que custava a curar, supondo fruto da comoção de assistir àquele reencontro há muito esperado. Tinha-se constipado com a friagem do lusco-fusco à luz do qual se diz que de noite todos os gatos são pardos.

Aconchegados nas copas das árvores, dos bicos inconstantes das aves, deixava de se ouvir, ao anoitecer, o chilrear intenso das manhãs e de ao longo do dia, que era quando mais sentido fazia que cantassem, abrindo caminho para nos embalar assim que fossemos dormir.

No interior da casa deparei-me com um cenário minimalista, como se presenciasse uma peça de teatro sem mobiliário em cena. Não havia mesas, nem cadeiras, nem quaisquer artefactos demonstrativos de algum dia ter sido habitada pelos humanos, apesar de há umas semanas o meu pai lá morar. Contei-as não precisando de me deslocar pois donde estava avistava-as facilmente. Eram ao todo três divisões, sendo que, na maior, adequada para servir de cozinha, havia um buraco no teto com chaminé, debaixo da qual havia espaço para colocar um fogão dotado dum forno aonde coubesse um cabrito. Porém, cabrito foi espécie caprina que nunca passou lá por casa, nem tão pouco o primo afastado borrego, ou pelo menos tantas vezes, como em relação ao bacalhau, a minha mãe teve de comprar paloco desfiado quando queria fazer em ocasiões especiais uma espécie de caldeirada muito apreciada por todos.

A casa inteira precisava de obra. Com tanto por fazer, o meu pai poderia ter começado por deitar as mãos à porta, pensando em proteger-nos do frio e da visita inoportuna de algum larápio. Uma mais forte e pesada resistiria diretamente ao frio, mas, devidamente fechada à chave, não cederia tão facilmente como aquela, ao empurrão que ele lhe deu para abrir, quando alguma vez perdesse a chave ou se esquecesse dela nalgum lado. Vi o desalento estampado no rosto da minha mãe, em sinal de desilusão por ver que afinal que malgrado o almejado e o sacrifício imposto pela separação à família, não perspetivava melhorar de vida. Por ela saiam claramente à procura doutro sítio para dormir. A casa era feia e escura, e estava convencida de que, nem pintada de cores garridas, transmitiria a falsa esperança de que para todos os problemas existe uma solução apropriada, e que para todas as doenças há cura, até no caso da morte.

Pelos vistos, era num colchão de palha, arrumado num canto como se fosse um objeto sem serventia, que o meu dormia, e era lá que devia passar muito tempo sentado, talvez a reler pedaços velhos de jornal, porque ao centro estava deformado com uma cova que alargava em círculos concêntricos como se fosse uma praga. A tremer de frio, o meu irmão recomeçou a lacrimejar. Os sintomas eram o pronúncio de uma forte gripe, que durou o tempo suficiente para os meus pais temerem que pudesse degenerar em pneumonia. Todavia, a proximidade do meu pai, trouxe-nos um acréscimo de alento. À vista do modelo que queríamos seguir, andávamos mais alegres e até a minha mãe tornou a sorrir. Foi como se do reencontro entre duas pessoas que se conheciam tão bem, ao cabo de tantos anos ainda se espantasse surpreendentemente com algum detalhe nele, em que nunca tivesse reparado.

Não estava naturalmente e par das circunstâncias em que se conheceram. Ambos jovens, provavelmente num arraial em homenagem ao Santo padroeiro do amor, que só não o é na capital, porque comprovadamente por todo o mundo tem abençoado casais de namorados que terminam no altar. Não que naquele tempo, as mulheres fossem namoradeiras, muito menos a minha mãe, que não via outra forma de distinguir-se senão sendo ainda mais virtuosa, do que às outras jovens, as mães pediam que fossem.

Já o meu pai, tinha-o na conta dum distinto cavalheiro capaz de gestos nobres, como o de se voluntariar para andar o dobro da distância até à fonte mais próxima, poupando a minha mãe ao tormento de ter de ir buscar água. Estou a imaginá-lo muito elegante a sair de casa cedo ao domingo, muito bem barbeado para ir ao encontro da minha mãe, que se era para esperá-la num sítio adequado, teria de ser, no mínimo, à porta duma igreja. Talvez fosse do agrado dela, ele ser alto e mais vistoso do que o único candeeiro aceso numa rua às escuras. Nela, encabeçadas pela simplicidade, talvez ele visse qualidades que o faziam acreditar num modo de vida tranquilo, mas viver nessa constância nem sempre foi fácil.

CONTINUA