“Armando Bernardo Cutileiro” – Detido inocentemente

No dia em que fui considerado perdido, aos meus pais é que deve ter soado a uma eternidade, o tempo decorrido até me acharem são e salvo, dormindo tranquilamente numa cela do recém-acabado estabelecimento prisional de Alcoentre, sereno, como se adivinhasse fácil a vida dos condenados que ali haveriam de pernoitar.

Mas eis como tudo começou: Estávamos em dezembro de 1943 e, pronta a obra, deram por concluída a chamada colónia agrícola destinada a reclusos em cumprimento de pena de prisão. Era por isso, tempo de efetuar as limpezas gerais nos edifícios para proceder à colocação do mobiliário, estando os diversos espaços destinados às mais diferentes funções. A ocupar a maior parte dos seiscentos e cinquenta hectares, havia instalações agropecuárias, mas sobrava espaço para as alas destinadas aos presos, com celas compostas por camaratas, para as oficinas, para o pátio que servia de recreio propício à atividade física; para o bairro dos funcionários; para uma enfermaria de internamento com serviços clínicos gerais; para uma cozinha com refeitório e serviços de bar; para uma barbearia; uma lavandaria e, por fim, para a parte administrativa.

Contratada para o efeito, a minha mãe foi uma das dezenas de mulheres que corresponderam à chamada e na alvorada do dia combinado, lá se apresentou ao serviço, dispondo-se numa fila que começava à entrada do edifício, onde todas estavam alinhadas aptas para trabalhar.

Constituía um trabalho duro, mais adequado à constituição física de um homem, lavar paredes e tetos e retirar entulho à força de braços não podendo acrescentar a ajuda de máquinas, mas embora mais habituada a trabalhar na horta, à minha mãe não faltaria habilidade nem inteligência para rapidamente aprender a fazê-lo.

Ultimamente, era costume acompanhá-la e sentar-me perto dela enquanto cuidava da horta com esmero necessário a fazer daquele lugar um jardim aonde eu gostasse de me entreter a brincar, deixando o meu irmão entregue ao cuidado duma vizinha a quem pagava com batatas e cebolas para servir de ama, embora agora de responsabilidade diminuída por não ter de olhar pelos dois.

A minha mãe chamava-se Judite e mesmo sendo de baixa estatura, estranhamente em qualquer lado que me encontrasse, bastar-lhe-ia esticar o pescoço para imediatamente me ver. Tinha o cabelo liso, mas dava-me a sensação de ser sedoso e encaracolado, quando fazia uma festa tentando atenuar-lhe o desgosto que sentia por não poder dar-nos uma vida melhor. Lembro-me de, em diversas ocasiões, vê-la de olhar cabisbaixo, mas nunca com a expressão de quem, ante as dificuldades, cruza os braços e se entrega, à condição de não saber o que fazer. Contudo, quando estava feliz tinha um sorriso alegre, imagem de marca de uma mulher de quem nunca seria de esperar que andasse triste, e um olhar doce que transmitia o grau de confiança que devem dar os amigos.

Ultimamente cansava-se mais facilmente do que era normal. Por precaução, deitara-se cedo na véspera. Preocupado, o meu pai levou-lhe à cama um chá, que ela bebeu num trago, antes de adormecer profundamente, e durante muitos anos nunca percebeu se era de tília ou outra erva que ele tivesse apanhado no caminho. Acordou bem-disposta, mas temendo que ele tivesse perdido as horas para ir trabalhar. À luz dum candeeiro que iluminava a portada, virando a cabeça viu-o dormir, deitado de barriga para o ar a ressonar, como se desfrutasse da liberdade de poder expressar-se sem correr o risco de ser interrompido.

Acordei estremunhado, mas no colo da minha mãe, embrulhado numa manta, senti-me tomado duma sensação de conforto, à imagem do retorno ao lar de um viajante que passou muito tempo longe de casa. À chegada, pôs-me com outras crianças numa sala, que dava sinais de dever vir a servir de cela. Era protegida por uma porta pesada, de aspeto maciço e equipada com fechadura e trinco exterior capaz de torná-la inacessível dispensando que tivesse aquele ar austero.

O sol entrava pela única grade na janela, que servia de tampão na eventualidade de alguém querer entrar. Era um espaço amplo, livre de objetos, a não ser uma dúzia de camas de ferro aonde deitavam os bebés, que tanto estavam à nossa guarda como duma senhora de meia-idade que, durante a manhã, entrava e saía constantemente à medida que lhe convinha saber se já estava pronto o almoço. Perguntava-me o que sentiria a minha se soubesse que ficávamos sós. Porventura abandonaria o trabalho, sabendo que, por conta do que deixasse por fazer, deixaria de receber pela jornada incompleta o dinheiro que pró sustento da casa tanta falta nos fazia.

Confiava em que eu com oito anos já tinha idade para me desenrascar. Parou para comer às duas. Comigo ao lado, mastigou uma sande de ovo mexido e, vendo-me comer, suspirou, que era a forma fácil de atenuar o cansaço e aligeirar o tempo com pressa de chegar à noite a casa e poder saborear, fumegante, um prato de comida acabada de fazer.

Passo rapidamente a tarde e amiúde ela vinha conferir se estava bem. Dei pelo sol pôr-se, mas à medida que as crianças do grupo saiam e me ia sentindo só, continuava achando que prioritário ela aparecer, seria a partir de quando não restasse nenhuma com quem brincar. Depois, devo ter adormecido, porque durante um intervalo de tempo não dei por entrar nem sair ninguém. Quem apareceu mais tarde foi o meu pai, na frente dum grupo de homens que correram a felicitá-lo como se tivesse tido o privilégio de cortar uma meta. Tinham todos um ar feliz, embora o meu pai mal disfarçasse a inquietação de ter a mulher doente em casa.

Subitamente, ela desmaiara e, com a aflição da pressa, esqueceram-se de avisar quem levou a minha mãe a casa, que ela estava acompanhada. Sedaram-na quando ela acordou nervosa, gritando o meu nome, ao ponto de um médico justificar aplicar-lhe uma injeção de analgésico com que de imediato adormeceu.

Não ganhou para o susto, mas felizmente acabou bem. Passei a restante noite tranquilo e como, quando deram comigo já passava da meia-noite, é que hoje em dia ostento orgulhoso o título de ter sido, embora não conste nos registos oficiais, o primeiro detido na cadeia de Alcoentre.

Continua…