“Armando Bernardo Cutileiro” – Ò Alcoentre, ò Alcoentre, Lisboa à Vista!

7H30. Mexi-me, mas fingi não dar pela presença discreta da minha mãe, que entrou no quarto, ainda às escuras, para me acordar. Devia calçar chinelos levezinhos de enfiar no dedo, mas nos meus ouvidos ressoavam os passos apressados duma criança fugidia, que além de não querer levantar-se, não desejava por nada ser posta na rua àquela hora.

Sacudiu-me o ombro, como se desejasse acordar-me dum sono de três dias, numa altura em que me virava, tentando colocar-me numa posição em que não pudesse encontrar-me. Deu ordem para me levantar, enquanto escancarava uma portada da janela, deixando antever que, independentemente do que eu dissesse, ali quem mandava era ela. Perdido no tempo, desconhecia que horas eram, mas deduzi que estávamos atrasados, em resposta a ter-lhe perguntado se era naquele dia que iriamos a Lisboa ao encontro do meu pai. Deitou-me um olhar zangado e eu despachei-me a ir comer uma papa de sobras de pão demolhado numa chávena de leite, só depois fui ao encontro do meu irmão, que esperava por mim vestido, como se, a propósito da fatiota escolhida, quisesse dar-me dicas de moda acerca do que eu deveria usar.

Estava bonito, mal comparado parecia um principezinho a ajeitar-se para assistir à tomada de posse dum presidente da República eleito através de golpe militar: sob uma boina de pala enviesada, como um soldado de infantaria; calças remendadas nos joelhos como se as tivesse rompido rastejando sob a cerca de arame farpado do inimigo; e o ar aborrecido duma sentinela de castigo, por o terem surpreendido de dia a dormir na guarida.

No final, saímos de casa à hora certa para apanhar a camioneta das nove que não se atrasou um minuto à saída da garagem. Era enorme e brilhava como o para-brisas dum automóvel ainda sem as dedadas de os miúdos se empoleirarem nele a espreitar lá para dentro. Após umas aceleradelas, arrancou lentamente, em contraciclo ao ritmo acelerado do meu coração, que se viesse a desfalecer não seria certamente culpa de alguma coisa estragada que tivesse comido ao pequeno-almoço. Pela janela entrava algum vento. Uma brisa veio e afagou-me o rosto, talvez contando ver-me sorrir na expetativa da surpresa seguinte mais agradável.

Sentei-me ao lado da minha mãe, calado, e permaneci assim durante horas. Pelo menos, foi a clara impressão com que fiquei, enquanto palmilhávamos quilómetros numa estrada sem o final anunciado para quando me aborrecesse de viajar acabrunhado e desse vontade de desatar a correr para desentorpecer os músculos das pernas.

Naquele tempo, as viagens eram demoradas e, num trajeto tão longo como entre Alcoentre e a capital, não raramente se viam viaturas estacionadas na berma, com pneus furados ou de capô aberto com o motor a fumegar, como se a coluna de fumo que se levantava do radiador se destinasse a avisar aos mecânicos nas redondezas, que ali estava alguém a precisar rapidamente de auxílio.

Ao mesmo tempo que a vida decorria desta forma pacata, de maneira ainda mais tranquila, o meu irmão serenava ao colo da minha mãe. Reconhecendo a má-disposição de não me querer levantar, pensava na opinião que o meu irmão teria a meu respeito e no que diria de alguém que, sendo mais velho, se portava como se fosse mais novo. Naquele momento desejei que nunca tivesse, como eu, de viajar sentado num banco tão desconfortável, que me fazia doerem as costas como se tivesse caído dele abaixo e, por causa de não parar quieto, ainda tivesse levado uma palmada da mão pesada da minha mãe. Não sei se era pesada porque nunca experimentei. A bem da verdade, tratava-se dum ser tão meigo, que só de aventar a possibilidade, não me admiraria que inadvertidamente pudesse morder a língua em sinal de arrependimento.

Por fim, ao cabo dum período interminável de horas, chegámos, os três exaustos: eu bem acordado, mas o meu irmão a dormir, com a minha mãe certamente desejosa de ele acordar para vir sentar-se ao meu lado e poder dar folga ao braço. Tínhamos à nossa espera o meu pai, que de braços aberto no meio da estrada acenava vigorosamente, fazendo sinais ao motorista para parar, como se, avançando em contramão, a viatura estivesse prestes a entrar no ramal de acesso a uma autoestrada. Dentro em pouco, descemos, eu atrás e, já de olhos bem abertos, o meu irmão, de unhas cravadas no pescoço da minha mãe, parecendo que queria impedi-lo de pousar aí a mão, quando se aproximasse com certeza desejoso de abraçá-la.

CONTINUA