“Armando Bernardo Cutileiro” – O anúncio da partida

Provavelmente, andava a matutar na ideia há mais de um par de semanas. A de viajar para Lisboa e encher um balão de oxigénio que, quando caíssemos ao seu lado, servisse para amortecer o choque de vermos que não tinha conseguido amealhar um tostão.

Não que o tivesse na conta de um homem empreendedor. No sentido literal do termo, essa palavra seria aplicada a um homem que, à custa dum grande investimento, conseguisse estabelecer-se em Alcoentre e que para prosperar mandasse vir de Lisboa o ferro-velho que exportaria por essa Europa ganhando rios de dinheiro.

Quando comunicou à família a decisão de retornar à capital, disse que o faria sozinho, ganhando tempo até estabelecer-se e voltar a estar em nossa companhia. Seria o percurso natural de quando faltasse trabalho em Alcoentre, mas a minha mãe naturalmente não gostou. Pôs um ar preocupado como se só para pagar a passagem tivesse de empenhar-se, não bastando todo o dinheiro que tinham em carteira e disse-lho. Foi de recusa, a reação inicial à decisão que ela entendia dever ter sido apresentada em forma de proposta, para ser discutida por ambos até estar totalmente de acordo.

Ver-se sozinha com duas crianças a cargo, representava o triplo do trabalho no dobro do tempo que teria de passar connosco para assegurar as coisas sem a sua ajuda. Parecia-lhe impossível levar a bom termo, uma tarefa em que, mesmo não sendo na ausência do marido, não seria descabido contar com a ajuda de alguém. Nesse particular, ganhava particular importância uma vizinha que morava ao lado. Chamava-se Ausenda e, principalmente em cuidar do meu irmão, desempenhava um papel tão importante como um copiloto no auxílio às manobras de aterragem, e de responsabilidade acrescida como se nesse voo transportassem umas dezenas de pessoas a bordo. Durante o tempo em que convivemos foi a presença mais assídua lá em casa, assegurando um serviço de acompanhamento, na ausência da minha mãe, tão eficiente como um piloto de helicópteros do INEM que tivesse resgatado com vida todas as pessoas refugiadas no telhado de um edifício em chamas.

Com a conclusão das obras da cadeia à vista, vendo o tempo passar, a minha mãe passou a andar ansiosa, e não fosse os problemas dizerem-lhe diretamente respeito, dir-se-ia que padecia da síndrome de tensão acumulada por sofrer em causa alheia.

Um dia, o meu pai entrou em casa e contou que estava tudo tratado. À boleia dum conhecido, partiria para a capital e este dar-lhe-ia guarida durante uns dias, e ela que ficasse descansada que mais tarde ou mais cedo mandaria notícias por alguém a dizer que estava bem. Sem esmorecer, à minha mãe não restava outro remédio senão resignar-se, metendo mãos ao trabalho e, daí um passo, enquanto preparou tudo para que no dia combinado, à hora marcada ele pudesse ir. Separou-lhe alguma roupa que enfiou numa mala de cartão que começava a desfazer-se: dois pares de cuecas, umas camisas esgaçadas no colarinho e um par de calças velhas, não sobrando já espaço para umas remendadas que ele vestiria quando aquelas se rasgassem. No final, verteu uma lágrima de saudade e meteu mãos à obra.

O novo normal acarretava mais trabalho. Deu uma arrumação na casa e fez o jantar, depois arrumou a loiça e passou a ferro, como se cumprisse tarefas duma lista que não podia simplesmente riscar, porque diariamente tinha de voltar a cumpri-las. De manhã, levantava-se de madrugada para trabalhar em part-time numa pequena parcela de terreno, alugada a um casal que, em troco de pagamento em géneros, a deixava lá ir todos os dias.

Cabia num hectare, a terra cultivada pelos chamados arrendatários, gente pobre que a esgravatava semeando ao máximo, porém, medida em quilómetros, a quinta tinha na totalidade proporções bíblicas, dado que para percorrê-la a cavalo, eram necessárias mais de quatro horas, acrescentando o tempo de descanso do animal, se desse o passeio no período de maior calor, logo após a hora do almoço.

À vista da sementeira, ficava impossível distinguir o que ela semeava. A face exposta daquele terreno fértil, era uma paisagem composta de abóboras, cenouras, espinafres e rabanetes. Consoante cada estação a paisagem mudava, e por isso davam lugar, entre outras coisas, a melão e vinhedo donde se extraía um néctar característico da região. Nos campos em volta, o que nunca faltava na primavera eram flores, e para atingir a perfeição era assistir ao regresso das andorinhas aos beirais. A mim, era dizerem-me que o meu pai estava bem e, muito em breve, a família voltaria a estar junta.

CONTINUA