“Armando Bernardo Cutileiro” – Nosso Quotidiano

Os anos da guerra foram árduos, tempos difíceis em que, a somar à fome, surgiu o espectro do posto de trabalho do meu pai estar ameaçado, pela conclusão das obras do presídio de Alcoentre.

O tema surgiu à mesa, através duma pergunta da minha mãe, que soou a uma tentativa vã de adivinhar o futuro, como parte dum questionário ao qual ele não sabia responder. Verão de 43. Da Europa, os ecos das batalhas soavam longínquos, como o alcance dos canhões de defesa aliados no cerco alemão à cidade de Estalinegrado.

O meu pai era alto e forte, e a despeito de nunca ter sido soldado, era seguidor duma norma de conduta que podia ser adotada pelo exército. Acordava e levantava-se cedo, sem necessitar de despertador, nem do canto madrugador do galo, que anunciava a alvorada como quem pedia ao dono que lhe preparasse um bom pequeno-almoço.

Estou em crer que o meu pai era um homem justo, embora revestido duma couraça, semelhante a uma capa que, a pretexto de proteger o corpo da chuva, nem sempre deixa ver muito bem quem se esconde por debaixo. Jamais distingui se a característica dominante da sua personalidade era a afabilidade ou a aspereza do modo como às vezes falava, sem que houvesse na combinação dos dois, um meio termo que, à falta de melhor, fizesse com que mais pessoas gostassem dele.

Do lado da minha mãe, ela era sobretudo paciente e resiliente em conformidade com a sua condição humilde. Era bondosa e meiga, como uma mulher a quem nunca fora pedido que abdicasse de nada para ser feliz. Apoiado nela construí uma personalidade forte e, inspirado no dela, edifiquei o carácter como um edifício sólido que até à atualidade permanece de pé.

Habitando na aproximação a uma zona de pinheiros para as quais, tanto o meu irmão como eu, olhávamos, desejosos de alcançá-los como se fossem árvores de fruta. Tinham espigões muito verdes bem elucidativos da paisagem circundante, composta de mato rasteiro e arvoredo da altura de uma casa de cujo terraço eu comtemplasse um jardim imaginando que tinha lá uma grande piscina.

Defronte da nossa casa, uma estrada de terra batida funcionava como uma barreira natural ao meu progresso, uma fronteira vigiada por polícias que exigiam a quem se atrevesse a atravessá-la, um valor elevado de portagem que os meus pais não poderiam pagar. Numa carroça puxada por um burro, ia lá a casa, à sexta-feira, um homem vender peixe. Tinha uma pena mais curta do que a outra e, por isso, coxeava, tombando o corpo, tal e qual os pratos duma balança, pró lado em que colocava mais peso.

Com pouquíssimo dinheiro para gastar, à minha mãe bastava um carapau para fazer duas refeições de peixe. Ao domingo, raramente comíamos galinha: uma perna desfiada num caldo com sabor à canja doutros tempos; e nos restantes dias, com a presença quase constante de batata, muitas couves e algum resto da carne de porco do almoço que preparava para o meu pai.

Prás bandas do quartel dos bombeiros, construído num ermo como que precavendo a possibilidade de uma futura ampliação devido à proliferação de fogos, morava o meu padrinho. Era um homem de baixa estatura, mas entroncado, de costas largas que nem um atleta lançador do disco, a quem fora recomendado que parasse de treinar por ter já uma compleição física adequada à prática de halterofilismo.

Estava na casa dos trinta anos e era solteiro, mas de bom grado casaria com uma mulher mais nova, se não acontecesse à maioria que já entradas nos cinquenta é que perdiam o juízo em troca de paciência para aturar homens que gostavam de passar os dias nos copos em companhia dos amigos. Colegas de trabalho, ele e o meu pai falavam-se muito bem. Em contrapartida, comigo deve ter falado pouco. Diria que a nossa relação era inexistente, mas acredito que mais por culpa dele. Devia ter querido que passássemos mais tempo juntos, nem que fosse, por mera questão de curiosidade, para aferir do resultado de ter escolhido chamar-me Armando. Não custava ter-se preocupado em ver, se em consonância com o significado do meu nome, eu era uma criança extrovertida, otimista, inclinado a dar-me à satisfação dos prazeres carnais e, simultaneamente, generoso e verdadeiramente amigo dos meus amigos.

Numa ocasião, pus-me a refletir e acerca do caráter da minha mãe, conclui que ser meiga e responsável, paciente e bondosa, deviam ser algumas das características mais intimamente ligadas ao seu nome. E ao do meu pai, que costumava regressar a casa animado, mas certa noite de ideias iluminadas ao luar, uma vontade férrea de trabalhar, nem que fosse, seduzido pela perspetiva de ganhar dinheiro na capital, abraçando uma carreira de sucateiro, montando em nome próprio um negócio em que pudesse dedicar-se à recolha de ferro-velho que, vendido ao quilo, lhe rendesse uns cobres.

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