“Armando Bernardo Cutileiro” – Um poço ali à mão de semear

Nas imediações do dito barracão das peças, a uns escassos cinquenta metros, haviam aberto um poço cuja abertura parecia a cratera de um vulcão capaz de engolir alguém distraído que tivesse a ousadia de ir lá espreitá-lo. De aspeto circular, era larga e profunda igual a um caminho que desse livre acesso às entranhas do planeta, mal passando o lençol freático que existia à superfície.

Terminantemente proibidos pela minha mãe de nos aproximarmos, o meu irmão e eu observávamo-lo à distância, tementes da boca impetuosa que, na melhor das hipóteses, expeliria durante um mês gases e uma corrente de lava incandescente até atingir o mar.

Media puco mais de um metro de altura, o pequeno muro que o cercava, mas não impedia o receio de um qualquer adulto se aproximar, medindo as consequências físicas de tropeçar e cair de cabeça, embatendo nalguma rocha que devia existir no fundo. Era pertença do atual dono da quinta, um sujeito afidalgado descendente direto do casal que, há mais de trinta anos, plantara as primeiras sementes e construíra no lugar da atual, a casa original, que era mais pequena e, por isso, não tão condizente com as ambições de grandeza do filho.

Há uns anos, fora aventada a hipótese dum tapume, mas saía caro, fazendo pesar, a favor dos que o não queriam, o argumento de que impedia a livre entrada da chuva, essencial para no verão garantir o nível da água adequado para irrigar os campos. Mais tarde, sugeriram uma rede, mas dum material resistente que não enferrujasse revelava-se ainda mais dispendiosa e, por fim, resolveram esquecer a ideia e abandonar o projeto, deixando a reentrância daquele baldio ao abandono. Com o poço deixado ao acaso, nem uma placa de perigo foi afixada no local, ficando entregue à sorte o destino de quem pudesse aproximar-se eclodindo uma tragédia.

Por causa disso, quem quase lá morreu afogado foi o meu irmãozito Rufino. Brincava com ele, quando sem razão aparente irrompeu a correr em direção ao poço, como se visualizasse um esconderijo aonde sabia que eu não iria procurá-lo. Deixei de vê-lo e encheu-se-me o peito duma aflição tal, que desejei antes tê-lo visto escorregar de uma ribanceira, por entre a terra sem água aonde não se pudesse afogar. Pus-me a gritar, e como a minha mãe andava perto, vieram com ela os demais trabalhadores da quinta, curiosos pelo motivo do meu desespero que não seria maior se, em lugar dela, tivesse apelado diretamente à ajuda de Deus. Ofegantes, vinham de rosto afogueado, apesar de tudo satisfeitos pela correria ter durado pouco tempo. Os homens de chapéu de aba larga e espessas casacas de tecido grosseiro; as mulheres de tamancos como varinas e as mais novas de saia cingida à cintura adelgaçada, que elegantes era como prefeririam ser recordadas, quando, finda a confusão, gentilmente os solteiros se oferecessem para acompanhá-las no regresso a casa.

Salvaram-no graças à coragem de um sujeito alto, com porte físico adequado a um atleta, que mal viu em que direção eu apontava se atirou à água com a destreza dum bombeiro que, num momento de aflição, não pede licença a ninguém para passar. Trouxe-o finalmente à tona, após vários mergulhos, como se a cada tentativa gorada visse diminuir rapidamente a capacidade de armazenar oxigénio nos pulmões, fazendo-o vir à superfície respirar.

Aparentava não estar vivo, desmaiado, exibindo o ar desanimado de quem, mesmo sobrevivendo, sabe que tem de encara uma vida de privações com dificuldades de vária ordem. Com o auxílio de uma parteira entendida em ministrar primeiros socorros, colocaram-no de lado e provocaram-lhe o vómito. Foi então que o vi lançar da boca para fora um volume significativo de água e, logo de seguida, para meu contentamento, abrir finalmente os olhos, suficiente para rebater a teoria de que nem toda a água bebida em excesso faz mal.

Umas semanas volvidas, empreenderam a instalação de mecanismo que visava extrair a água do poço, para conduzi-la através dumas condutas aos campos de cultivo do nabo, uma parte tão importante da produção hortícola da quinta, que, numa altura de aumento da procura, por si só justificava pagar, nem que fosse para trazê-la de uma fonte a dezenas de quilómetros de distância. Ergueram, dessa vez, um muro de maiores dimensões, destinado não apenas a impedir a aproximação de estranhos, como a restringir no acesso ao mecanismo de extração do precioso líquido, a entrada aos técnicos, que corrigiam o fluxo da água quando esta afluía num nível suscetível de submergir os campos, ameaçando transformá-los num vistoso arrozal.

CONTINUA