“Armando Bernardo Cutileiro” – Uma gabardina dá um jeitaço

Não tardou a aparecer um emprego que encaixava que nem uma luva no perfil polivalente da minha mãe. Não era perto, nem bem pago, nem dava a oportunidade de pausas a meio do dia. Não era, por isso, muito diferente de todos os trabalhos que tinha tido até à data.

Quando nos reuniu para contar, o meu pai achou oportuno revelar que iria aceitar, também ele, uma proposta de trabalho em Leiria, aceitando o desafio dum trabalho em obra, em minha opinião só menos aliciante do que o de saber se novamente sozinha, ela seria capaz de ao mesmo tempo cuidar de nós e trabalhar fora de casa, assegurando o sustento.

Começou num dia em que, ao meu pai, faltaria coragem de partir para Leiria na companhia dum angariador de mão-de-obra que mais parecia um recrutador de soldados para a guerra, se visse como estava desanimada. A estação favorita dela, o outono, mal começara e, sem motivo aparente, nas árvores de folha caduca já pouca folhagem restava para provar que o inverno vinha longe. E nem o vento forte servia de desculpa, porque donde ele soprava, vinha quente pelo contrário parecendo augurar a primavera. Embora apta fisicamente para laborar numa quinta, preparando as carradas de legumes que seguiam para o mercado de produtos frescos, sentia-se insegura e desmotivada como se soubesse à partida que o trabalho era em vão porque ninguém se lembraria de os comprar.

Chamava-se Quinta da Serra, formando um amplo espaço de uma dúzia de hectares que observado a altitude é que daria a conhecer a beleza do campo de cultivo, apenas um dos de onde saiam diariamente camionetas carregadas para abastecer Lisboa. Essas carradas eram feitas manualmente e atadas com cordas por mãos fortes para assegurar que nada se perdia pelo caminho, as quais, dependendo do que transportassem, podiam pesar vinte ou mais quilos, o bastante para só conseguirem pegar-lhe duas ou três pessoas que tivessem a constituição física da minha mãe. Daquele lugar a nossa casa, distava uma mão-cheia de quilómetros, o suficiente para mais de uma hora de caminhada num empedrado que lhe calcava a sola dos pés deixando-lhes calos à vista, pela ausência da proteção que há nos ténis de sola de borracha dos atletas que, ciosos de proteção, hoje em dia os calçam para percorrer distâncias menores.

Como não havia dinheiro para transportes, quase sempre ela ia a pé, descontando um par de vezes em que por sorte apanhava boleia nalguma carroça que não fosse já apinhada nessa direção, pelo que, embora mais curta, dava a impressão de ter terminado uma maratona quando chegava extenuada, ainda sem vontade de vir embora a menos que pudesse descansar o dobro do tempo. Percorremo-la com ela algumas vezes e num desses dias, quase acontecia uma tragédia de que darei conta oportunamente.

A partir de certa altura, alternadamente ficava entregue à minha mãe, a guarda no período noturno, de um pequeno barracão situado lá nas redondezas, aonde guardavam escrupulosamente as peças da nora. Deviam ser objetos valiosos, a julgar pelo empenho dela e pelo ar de compromisso da forma como a minha mãe nos contou. Normalmente, ofereciam-se para aquele serviço, as mulheres mais jovens, mas quando alguma das casadas ou com filhos precisava dum ganho extra, destinado a pôr além da sopa, mais comida no prato sem sequer chegar à sobremesa, lá se ofereciam e passavam lá dentro a noite trancadas, à espera de nenhum ladrão vir roubar-lhes o sossego igual ao que teriam se tivessem ficado em casa.

Certa vez, em que nenhuma vizinha podia olhar por nós, o meu irmão e eu fomos com ela. Guiados pelo lá fomos como parceiros de jornada, ao encontro de saber em que medida o risco de nos virmos a cruzar com um delinquente, não justificaria ela ir antes na companhia duma vizinha a quem não bastasse ter sono para, à hora de ir para a cama, se pôr a dormir. Estranhei, numa noite de céu estrelado, vê-la pôr a jeito uma velha gabardina do meu pai, que vestiu como se se aprontasse para enfrentar um temporal ou apenas procurasse um disfarce aonde coubesse o cano duma espingarda. Como se pudesse desabar um temporal violento que durante uma semana nos impediria de percorrer o caminho lamacento de regresso a casa.

Pus-me a observá-la e parecia um homem, de pé envergando a veste como uma farda que tinha orgulho de vestir como se exibisse a condecoração duma batalha. Pude admirar como, com a imponência dum soldado que valia pela coragem dum batalhão, ela seria tão capaz de afugentar um ladrão, como de mim o pior receio de que algo pudesse suceder. E não tardei a perceber a necessidade de encarnar uma personagem.

Estava escuro como breu e pelas frestas do barracão o vento uivava como o lamento de saber que algo ruim estava para acontecer. Tínhamos jantado e estava a o meu irmãozito a tentar adormecer, quando vindo do exterior o latido do cão anunciou estar na presença de estranhos. Assustada, a minha mãe largou o que estava a fazer e pôs-se à escuta, encostada às ripas, tentando medir a aproximação dalgum indivíduo eu devia ser pesado e, por isso, mover-se lentamente ou sem dúvida já lá teria chegado. Repentinamente, e tão perigosa como a fagulha duma fogueira num fardo de palha, uma ideia faiscou-lhe o cérebro e fê-la sair. Bateu com a porta e pôs-se aos berros, gritando à escuridão com voz masculina ao mesmo tempo que batia numas latas com um cajado, porém, mal disfarçado o nervosismo de, embora imitando um homem, pudesse o sujeito infiltrado achar que fosse um cobarde. Corri atrás dela e com um pau bati numa lata com tanta força que no final nem olhando com atenção se perceberia para o que tinha servido.

Era um espetáculo medonho no meio do nada, de final imprevisível, e nós desempenhando um papel, na derradeira cena duma Peça, a cujo encenador faltaria acrescentar alguém a perguntar se precisávamos de ajuda ou, melhor ainda, colocar o meu pai em cena m busca de ter um final feliz. Não soubemos se por lá tinha andado alguém naquela noite, se andou não deixou rasto, muito menos se atreveu a aproximar do barracão. Felizmente, não nos deparámos com nada nem ninguém que se assemelhasse a uma pessoa em fuga, de mãos livres ou carregando alguma peça da nora que lhe retardasse o passo, e na manhã seguinte, às claras, uma leve investigação revelou-se inconclusiva. Certo é que tal foi o alarido que acorreram uns vizinhos indagando o sucedido e essa proximidade no futuro viria a revelar-se necessária.

Resultou bem o disfarce da minha mãe. Tão bem que, vestida igual ao meu pai, voltei a sentir-me na presença dele. E assim, à dupla função de mãe e trabalhadora, juntou, a partir desse dia, a do progenitor ausente, que certamente, mesmo nos dias de chuva, não lamentaria ter esquecido a gabardina, se adivinhasse o jeitaço que nos dava.

CONTINUA …