As flores da cegueira

Casa. A casa vazia. O chão quieto. As comoções todas. Uma alma localizada no interior de um país habitado por gentes várias. O silêncio, o encanto inestimável da paisagem rural. O consórcio primoroso com a natureza envolvente, entre outros movimentos atentos. Um corpo à volta, a pé. Um tronco humano previamente delineado, que mais não é um passo dado por cada um dos sobreviventes. No interior da casa existe uma cama, afora de tudo, uma cama e um coração que bate incessantemente, assíduo. Que conta a espera. E que outras vezes finda.

Um móvel usado para adormecer; defecado, urinado involuntariamente, carregado de histórias por desvendar. Um assento desconfortável e com paredes de pedra. Quatro paredes de lousa, e pouco mais. Ao fundo, junto à porta da respiração ofegante, um vaso envelhecido abarrotado de flores. Flores cegas, que tudo ouvem. O homem, por exemplo. As gargalhadas que um dia perduraram. As conversas que um dia repetiram. E ecoaram. As flores da cegueira.

A solidão triste. Afinal, os dias existem, e são. Não há nada mais penoso que a penumbra. Solidão; a morada contemporânea, a assinatura honrosa que acaba sempre por chegar. O acordo com a mãe da seriedade. Da sabedoria plena.

A manhã desperta para mais uma oportunidade. O pátio vê crescer as sombras. Observa como quem derrama chuva. O homem repousa as mãos, intimida permanecer assim o dia completo. A morrer acolá da vida. No lugar das palavras que sobrecarregam os calcanhares e os aforismos. Imediato à cama, à beirinha de todas as testemunhas, cravada de diamantes falsos, estagna uma mulher. E uma mulher nunca é de desconfiar. Sossega os dedos amigos, sobre o espaço deparado, onde os versos proferidos arruínam a estação do tempo. As pessoas têm germes, alguns agoniados. Os encontros, por critério estabelecido, são momentos pertinentes. Contentes ou não, apropositados. Como é o caso da mulher chegada. Que discursa sem saber ao certo.

“Aqui estás tu à porta do que faltou dizer. Aqui estás tu de frente ao coração, que morde o tempo como algo impenetrável. Declinas a resguarda do olho, meu pai. A crueza dos ossos, os que estão à mostra. Caiem agora que cheguei.”

O recordar desolado de uma história inteira. O pranto das árvores. A estrada segue terra em frente. Os carros poucos, cerrados na manhã fria. E o homem crente, de sapatos leves sobre o enfadonho franco do destino.

“Quero ver-te em funcionamento, minha filha. Que a morte não te acompanhe, e que saibas ver o mundo com os teus pés. Quero ver o teu sorriso rasgado, transformado e criado por outras gentes. Agora, antes que seja tarde.”

As pessoas são temporárias. Embora queiram o contrário, são de curta duração. As coisas acontecem de passagem. As lágrimas são desnecessárias, é importante aceitar a velocidade imposta pela vida. A garantia da perene incerteza.

A mulher afaga a fraca testa do homem. Do ser que a ensinou a viver, a deslumbrar tudo. Traça uma pequena expressão facial. E o homem tranquilo. Apenas imputa os ouvidos.

“Estou em perfeito desequilíbrio. Absorvo as ausências, e tudo me chega ao íntimo. Sinto a tua dor como se fosse minha. Quero apenas a tua paz, para que sejas o melhor de ti. Simplesmente porque te amo. Amo-te muito, meu pai.”

Ouve-se o bater da porta. A mulher afasta-se, recolhe o admirar e concentra-se no que está para vir. É deprimente caminhar no escuro. É triste morrer pelos dias submersos. Com que pontes e ruas, entre o futuro e as quadras fora. A visita é descortinada. E um abraço é bisbilhoteiro.

“O enterro é daqui a meia hora, minha senhora.”

O tom de voz do novo rosto é explícito. A frase simples e directa, como a ocasião. A frontalidade do momento, e alguém por entrar ou por sair. Entardecem as forças. A naturalidade como premissa obrigatória. Caminham até ao quarto, e a voz da mulher impera o atordoado. Com a vista fixa no cadáver por acabar.

“É inconsolável termos de nascer e morrer.”

Acabou-se mesmo qualquer coisa. O imediato é a terra comparecida, durante largos minutos. A extenuação é o instante. O dia é mau, e ainda mal começou.

A intrigante visita invalida o silêncio.

“Fala como se o senhor ainda aqui estivesse. Existe apenas a cama, minha senhora. A vida é feita a brincar, e o tempo não volta. A senhora sempre esteve aqui, bem de perto. Sabe disso. É o mais importante. Quando amamos alguém, devemos estar sempre por perto, mesmo estando longe.”

“Para mim, ele vai estar sempre aqui; dentro de mim, e deitado nesta cama que o viu dizer adeus para sempre.”

A mala do carro cheia de bagagem é cicatrizada. Encerrada. E de súbito, os novos gestos, inúmeras vozes, a carência de repetições.

Torna-se fechado o tampo do caixão. O cheiro a morto. A cara do conhecido para todo o sempre. O último amor e a caixa de péssimo gosto. Com força e muita falta de determinação.

A morte é a paz. A fórmula religiosa e o valor absurdo de não valer nada. O humano. A fé transbordada, farta de tudo, assim é encontrada. A morte é um favor que se faz aos vivos.