As Leoas Caçam, Os Leões Descansam – Carla Vieira

Se me perguntarem acerca da minha infância, não há muita coisa que me venha à cabeça, principalmente de quando andava na primária. Lembro-me de alguns puxões de orelhas, de uma colega ter partido uma perna antes da festa de Natal, e da minha instrutora de música, a Delita. Não me consigo recordar de muito mais, mas lembro-me bastante bem das minhas colegas de turma.

Do primeiro ao quarto ano convivi numa turma de mais ou menos dezasseis alunos, entre eles três rapazes. Ora é perfeitamente normal lembrar-me mais das raparigas, mas não é essa a razão. O que eu me recordo é a hierarquia fascinante que tomou lugar durante esses quatro anos.

Havia por lá uma rapariga, que não sabendo bem como isto aconteceu, se proclamou a chefe das garotas. Basicamente, ela mandava naquilo tudo, e a maioria das raparigas obedecia-lhe. Quem não obedecesse, pagava bem caro. As meninas de quem ela não gostasse também pagavam severamente. É preciso lembrar que qualquer acto de maldade que tenha acontecido durante estes anos foi feito por crianças que passavam a maior parte do tempo sozinhas, e espero estar correcta quando digo que não há ressentimento nenhum por parte de qualquer das minhas colegas. O que eu quero referenciar aqui é a chefia clara de uma rapariga que governava mais de dez crianças e que se manteve no topo durante a maior parte do tempo. Poder-se-lhe-ia chamar de Fêmea Alfa. Por exemplo, se apanhasse alguém a cobiçar um dos machos, tomava medidas defensivas mostrando-se ao tal macho e castigando a fêmea que se atreveu a desrespeitá-la.

Os leões machos alfa muitas vezes matam os filhotes das leoas com quem querem acasalar, mas as leoas alfa também exibem comportamentos agressivos para o bem da sua tribo. A Fêmea Alfa usava os seus poderes de argumentação para convencer as suas lacaias a virarem a turma quase toda contra qualquer membro da tribo com quem ela tivesse problemas. Era realmente uma hierarquia brutal.

Quando nos separamos, as coisas não ficaram muito diferentes. Sim, a Fêmea Alfa foi separada do grupo, e por isso, inseridas noutro espaço desconhecido, algumas outras fêmeas sentiram-se perdidas… Até que uma fêmea decidiu ocupar o lugar de sucessora. Foram tempos atribulados para quase todos os membros porque obviamente havia quem quisesse o lugar para si, mas com uma turma maior, de vinte e tal alunos, a paz reinou com o contrato mental de que se criariam dois aglomerados e duas alfas que não se chateariam uma à outra, embora houvesse um certo período em que os machos andaram ali num rodopio impressionante.

Isto vem a propósito realmente daquilo que nós, mulheres, costumamos dizer: “as mulheres são umas cobras”. Somos dramáticas, irritamos toda a gente com os nossos guinchos e berros e não hesitamos a atirar outra mulher para debaixo de um autocarro se for preciso. “Isto tudo porquê?”, Perguntam vocês. E eu digo. Digo que nós somos selvagens apenas quando não existe uma hierarquia bem estabelecida.

Não me levem a mal, eu sou mulher e não me passaria pela cabeça dizer que nós precisamos de pessoas que mandem em nós. Não é isso que estou a dizer. No entanto, realmente quando eu passei por uma tribo em que não havia nenhuma Fêmea Alfa, nenhuma leoa dominante, havia sim vários atritos e não era nada para ser levado de ânimo leve. As formigas são um bom exemplo disso: se alguém lhes tirar a rainha, o que acontece é que a colónia vai ao ar porque as formigas desatam a matar-se umas às outras feitas parvas. As abelhas são outro exemplo disso, e sim, estas espécies são governadas e constituídas maioritariamente por fêmeas.

A solução, portanto, para que deixemos de nos matar umas às outras, é em qualquer sociedade maioritariamente feminina, alguém ter de se impor. Basta ser aquela que não cacareja quando algo está mal; aquela que diz “Cala-te!” quando uma mulher qualquer está a berrar e a fazer um espectáculo sem razão nenhuma; aquela que não chora baba e ranho quando perde o controlo da situação; a que arranja sempre solução quando tudo parece perdido. Há sempre uma rapariga assim, se repararem bem nas vossas socializações. Podem nem notar, mas essa é a alfa. Ela vê tudo e impõe a ordem quando tem de ser, mas não se mostra a não ser que seja estritamente necessário porque sabe, e vocês sabem e eu também, que quando ela se mostrar, é quando as outras fêmeas vão farejar e planear a melhor forma de a substituir por elas próprias.

Sim, a nossa batalha nunca acaba, mas também… Onde estaria a graça de ser mulher se nós não fôssemos assim?

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente