As aventuras de uma portuguesa na Alemanha – 1ª parte

Não contava que em Berlim estivesse tão mau tempo como na previsão que vi para Moscovo, quando saí no voo de Lisboa que fez escala em Roma, à mesma hora a que em Paris eram nove da manhã, e que por causa de uma greve dos controladores aéreos mais parecia uma cidade do terceiro mundo, como Calcutá, do que aquela que haveria de suceder no segundo semestre deste ano a Atenas na presidência rotativa dos países membros da União Europeia.

Ia quase com quase três horas de voo, quando, pela janelinha do lado do avião em que eu ia, vi que uma superfície frontal de altas pressões avançava e ameaçava perturbar a calma dos habitantes daquela que era a cidade capital política da Alemanha. Embora não percebesse muito de rotas, pelos meus cálculos aproximava-se vinda de sul, do lado da nascente do Spree, na Saxónia, a paredes-meias com a fronteira com a República Checa.

Mas por enquanto Berlim era uma cidade calma. Sobrevoamo-la dali a uns minutos nas manobras de aproximação ao aeroporto e vista das alturas invadiu-me a sensação de que aquela era efetivamente a cidade ideal para viver no próximo ano. Através dessa pequenina janela que mal se distinguia da vigia de um submarino porque ambas eram redondas, a realidade nua e crua parecia distante e até as casas, assim como as vastas áreas de cultivo que se avistavam, eram de tamanho tão insignificante que se reduzíssemos a valores da mesma escala os problemas da rotina diária dos seus cidadãos, esses praticamente deixavam de existir.

À medida que fomos descendo e perdendo altitude, começaram a ver-se, a romper as nuvens, edifícios altos de linhas tão arrojadas como o seu propósito de tocar no céu.

A maior parte deles, percebia-se que deviam ser edifícios multifacetados com o duplo propósito de servir às maiores empresas multinacionais da indústria alemã que neles instalavam os seus escritórios funcionais; e de adornar praças, ruas e avenidas dando-lhes um ar de modernidade.

Vistos de mais perto, alguns edifícios que deviam de ser governamentais eram de cor austera, o que dava uma ideia sobre a natureza dos assuntos que eram discutidos lá dentro. O maior de todos, que eu reconheci de uma viagem de estudo feita há uns anos, era o Reichstag ou o edifício do parlamento alemão, que ocupava largamente um quarteirão no distrito de Mitte. Era, como praticamente todos os seus semelhantes nos países da União Europeia que eu conhecia de ter passado férias, imenso mas ainda assim não de tão grandes proporções como os interesses pessoais daqueles que, em nome do povo que os elege, elegem em proveito próprio outros interesses menos legítimos mas que defendem muito mais afincadamente.

Não era uma cidade fantasma a que eu haveria de encontrar quando se imobilizasse na pista do aeroporto internacional de Schoenefeld, apinhada de aparelhos iguais àquele, o avião em que eu seguia. Ainda antes de abrirem as portas laterais, acercar-se-iam de nós técnicos à procura, na fuselagem, de danos provocados talvez pelas aves de maiores dimensões que causavam mais estragos do que as suas congéneres de terra na pintura dos automóveis de rua que ficavam durante muito tempo estacionados debaixo das árvores.

Depois, abrir-se-ia uma porta na cauda e como de um barco em chamas repleto de passageiros que era preciso socorrer, aproximar-se-iam de nós as hospedeiras de terra para nos tirarem urgentemente dali. Para não nos perderem, conduzir-nos-iam em fila até à entrada de um pequeno autocarro de 25 ou mais lugares sentados, estacionado na pista a que tínhamos acesso descendo uma escada metálica apoiada num carro que nos dias de vento forte devia dar uma sensação de desconforto tão grande a quem descia como escorregar manga de emergência abaixo para escapar a uma situação de perigo iminente que ocorresse no interior do avião. Mas em boa verdade, era mais rápido fugir do avião deslizando por uma espécie de mangueira que devia causar assaduras no rabo, do que esperar pacientemente que à traseira do avião acoplassem uma escada de salvação que demoraria tanto tempo a deixar operacional como uma ligação que desse acesso a uma estação espacial a partir de um vaivém na órbita da Terra.

Mas em primeiro lugar, e antes de pensar no que aconteceria quando descesse era preciso entender o que se passava perto de mim. Um homem de testa alta, de aspeto de origem humilde a quem devia ter saído recentemente um prémio chorudo na lotaria que não só lhe permitiu ter dinheiro para viajar em 1ª classe como para adquirir um fato de seda de bom corte, gesticulava apontando as mãos na minha direção como se indicasse a quem estava com ele que o caminho correto para saírem do avião era por ali, ou seja, passando-me por cima. Aproximou-se rapidamente de mim, de tal forma que me apanhou desprevenida. Tinha o cabelo da cor do cume de um monte nos Alpes onde o Inverno há muito se instalara. Só o bigode era grisalho e não fosse este ter o ar natural de um adereço que era aparado diariamente, dir-se-ia que era falso, como o sorriso com que a companheira parecia querer desculpá-lo, e mais não era do que um adereço que integrava o figurino escolhido pelo encenador da Peça para a personagem que ele de forma ridícula estava ali de pé a representar.

Afastada dos dois, uma mulher de poucas falas que podia ter a minha idade, observava-me admirada como se ouvisse no que ele dizia o que me apetecia responder-lhes aos gritos por aquele se estar a dirigir a mim em termos que eu considerava impróprios e num tom de voz que me desagradava tanto como as calças e a blusa de rendilhados que ela usava.

Devo ter corado porque me senti mais quente. Fingi que não entendia o insulto e sentei-me. Nessa altura passaram outras pessoas que aguardavam a sua vez numa fila que afinal chegava às casas-de-banho, e para não perceberem que era comigo que ele discutia, de pronto endireitei-me na cadeira para pensarem que eu estava sentada há tanto tempo que até já me doíam as costas.

Quando soou o aviso sonoro de que devíamos dar atenção ao discurso de despedida do comandante, uma luzinha vermelha do tamanho de uma mosca acendeu-se no painel sobre a porta de entrada da cabine da equipa de pilotagem, mas contrariamente ao que faria o pequeno inseto para passar despercebido, esta começou a piscar e eu percebi que era esse o primeiro sinal para colocarmos o cinto de segurança na manobra de aproximação à pista de aterragem que se pretendia que fosse pacífica. O segundo, foi-nos dado pela hospedeira sorridente que se colocou debaixo dele, à vista de todos, a fazer uma sinalética que poucas pessoas devem ter pensado que era para si, idêntica à de um polícia sinaleiro que só não podia mandar-nos avançar ou mudar de direção porque a maioria de nós já estava presa ao lugar. Olhei para o lado e não só vi que para evitar percalços de última hora já todos estavam a postos para a descida, como, ainda antes que ela nos explicasse como se punha e para o que servia, já quase todos haviam experimentado os kits de respiração assistida para só usar nos casos em que um acidente grave provocava uma perda de oxigénio a bordo.

Saímos do avião e fiquei surpreendida com o número de passageiros que vinham comigo. Menos mulheres do que homens para compensar em terra elas serem em muito maior número, mas não tão elevado que o mais otimista dos homens ao ver fosse logo pensar que elas tinham começado a cair do céu.

Atravessámos, a caminho do ponto de recolha da bagagem, uma sala ampla decorada com diversos vasos ao centro contendo plantas de ar exótico que podiam ter sido ali deixadas pro algum passageiro que não tivesse espaço nas malas para arrumá-las ao lado das bugigangas inúteis que comprara para oferecer a primos e sobrinhos.

Vi as minhas duas malas rodarem à deriva numa passadeira rolante que as punha a andar de cá para lá mas felizmente não podia devolver à procedência. É que eu, mais do que os meus familiares que tinham ficado em Portugal, precisava de tudo o que elas continham enquanto durasse a minha permanência na Alemanha, que se prolongaria enquanto estivesse a dar aulas de Português em horário noturno numa escola daquela cidade a jovens adultos.

Necessitava do seu conteúdo quase tanto como, naquele momento, da força de um homem que me ajudasse a arrancá-las do tapete rolante que não parava de rodar, a fim de sair o quanto antes à procura de transporte para o pequeno hotel onde tinha reservado quarto com mais de quinze dias de antecedência, pela Internet. Com o valioso auxílio de todas as mulheres que via, dali até á distância de muitas salas, eu sabia que podia contar se apregoasse que dentro delas vinham sandálias e sapatos, cremes hidratantes e de beleza. Seriam as primeiras a pegar-lhes para me ajudarem a carregá-las. Os sapatos eram tantos e tão variados que dariam para elas usarem com todo o género de toilete nas mais diversas situações; os cosméticos não fariam menos sucesso, pois para prevenir as mudanças que o clima hostil pudesse desencadear na minha pele sensível, trazia-os adequados a todos os tipos de epiderme, das secas às oleosas.

De repente, olhando para o lado de onde se ouvia uma voz de mulher a falar alto com o marido, não via agora nenhuma hospedeira gesticulando para eu dar passagem a alguém que estivesse parado. Andando em sentido contrário ao da maioria das pessoas que procuravam uma placa que assinalasse a saída, vinha um polícia fardado, em tudo igual aos que tinha deixado na minha terra: de ar bonacheirão e calmo, mas cansado como se acabasse de ter feito a pé os 22 quilómetros do trajeto que nem que fosse de táxi eu me preparava para percorrer rumo ao centro da cidade.

(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)