As aventuras de uma portuguesa na Alemanha – 2ª parte

(CONTINUAÇÃO DA SEMANA ANTERIOR)

Não se aproximou de mim nem me abordou, à semelhança do que provavelmente faria qualquer congénere seu português. Passou rente aos viajantes a cujo objetivo ao visitar a Alemanha ele era alheio.

Se o tivesse feito, teria resultado em vão o esforço que despendi para passar despercebida no meio de mulheres de outras nacionalidades, e das idades mas díspares, que se pavoneavam como se quisessem congregar as atenções dos machos de todas as espécies. Pela minha parte, sentia-me feliz pelo aspeto que tinha e entendia que quem gostasse de mim teria que ser pela pessoa que eu sou e não pelo que pudesse representar na intimidade das suas fantasias.

Sorria quando revia ao espelho a minha aparência de menina enfiado à força num corpo de mulher que cresceu até entrar na idade adulta e só por manifesta má vontade ou desejo de me ver arrepiar caminho para a reforma é que alguém me dava mais de trinta anos embora tivesse mais seis na conta. Tudo fiz para me manter jovem e assim aos vinte e cinco anos usava o penteado que ainda aos vinte me dava o ar das adolescentes que eu queria imitar da televisão.

Sentia-me de alma leve e quando cheguei aos trinta, ainda achava que refletia mais o meu sorriso acerca do estado dela do que o par de olhos azuis que eram do tom que o céu sempre deveria ter ao longo do ano. A pele, desde sempre bem cuidada, apresentava-se até hoje com o ar fresco da fruta da época acabada de colher e os lábios para quem não gostava de morangos eram vermelhinhos como cerejas maduras apanhadas da árvore.

Para me endireitar de um empurrão dado nas costas por um homem em fuga, quase caí defronte do polícia que teria dificuldade em compreender a razão de me ter atirado aos seus pés. Salvou-me da queda a ajuda atempada da senhora Eleonora Andaluz Peralta, uma colombiana de pele do rosto ressequida e gasta como uma peça de roupa abandonada num estendal, de aspeto da era anterior à chegada dos primeiros colonizadores espanhóis à América, que me estendeu o braço antecipando o passo em falso que me faria tropeçar nos meus próprios pés.

Tratava-se de uma senhora muito idosa que tinha viajado ao meu lado desde que embarcou na capital italiana, com tanta bagagem de mão que devia carregar consigo para onde quer que fosse os objetos favoritos de todas as vidas passadas. Lembrava-se de memória das histórias contadas na primeira pessoa pelo bisavô que foi general numa guerra infinda, cujo avô se orgulhava de ter colaborado com Simón Bolívar na elaboração do rascunho que deu origem ao texto da primeira constituição promulgada no país.

Como toda a sua família já tinha partido, Eleonora Andaluz Peralta decidira viajar atrás do único neto vivo que conhecia, e torna-lo herdeiro desse conhecimento que não servia, porém, a ninguém para saber o que devia fazer com ele, muito menos como escrever um livro onde tudo ficasse registado, e daí ser necessário continuar a transmiti-lo por via oral.

Pouco depois, via-a entrar no primeiro táxi que parou à nossa frente porque deve ter pensado que as malas eram todas minhas e desapareceu. Fiz o mesmo. Resolvi imitá-la e entrei noutro que vinha na peugada daquele como se viesse a persegui-lo. Depois, a grande velocidade, encetámos uma perseguição ao veículo que seguia à nossa frente como se de continuar no seu encalço dependesse o motorista terminar o dia mais cedo e mais depressa regressar a casa aos braços da mulher.

No rádio que ele levava ligado numa estação local, ouvimos notícias de um acidente ocorrido há alguns minutos que ainda estava em fase de rescaldo. Um choque em cadeia originado no despiste de um camião derramou mercadorias no solo tornando intransitável uma das vias. Em consequência, por causa da fila de trânsito que se começou a formar dois quarteirões abaixo do local onde seguíamos, tivemos que abrandar e o motorista foi forçado a entrar num atalho em direção a uma rua perpendicular de sentido único em cujas casas deviam morar pessoas tão respeitadoras da proibição de estacionarem as suas viaturas em cima do passeio como do limite de velocidade que era imposto aos condutores, muito inferior àquela a que circulávamos naquele momento. Por causa da velocidade excessiva é que na curva seguinte à direita derrapámos e ouvi uma grande chiadeira de pneus, depois por causa do cheiro a borracha queimada que eles soltaram tive vontade de fechar a janela e imaginar que estava novamente a bordo de um avião que se preparava para levantar voo a qualquer instante. Respirei fundo e o homem deve ter sentido o meu bafo no pescoço. Olhou-me através do espelho retrovisor colado ao cimo do vidro dianteiro e percebi o olhar dele de suspeição como se duvidasse do meu desejo de chegar viva ao destino. Estava na firme disposição de fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para travar o carro no momento exato em que estivesse para embater num muro. A toda a velocidade ultrapassou um ciclista que seguia na berma de olhos colados numa rapariga que acenava, e de súbito um camião igual ao do acidente de há pouco em que ficaram laranjas esmagadas na calçada, como se para se desviarem dele os outros carros que circulavam o tivessem subido mesmo correndo o risco de atropelarem os peões.

Mais adiante, na proximidade de uma rotunda oval foi preciso abrandar e ceder a prioridade aos veículos que se apresentavam pela esquerda, mas ainda antes que todos tivessem passado, já ele numa demonstração clara de que era tão cumpridor das regras de boa cidadania como atento aos meus sinais de desespero estampados no rosto, passava à frente de tudo e de todos como se afinal não fosse em casa que tinha a esposa de braços abertos à espera mas num quarto do hotel para onde íamos. Eu devia estar roxa das raízes dos cabelos à plantas dos pés, sobre os quais certamente não me conseguiria equilibrar se me pudesse levantar. Com uma tremedeira nas mãos que me impediriam de lhe arrancar o volante das dele e por em prática uma condução defensiva, sento uma vontade de chorar ainda maior do que se ele me tivesse chamado aos berros aselha e acusasse de ser tão má condutora que para estacionar o carro de traseira tinha que chamar o meu namorado que ficara em Lisboa.

Finalmente estacionámos à porta do hotel e para minha surpresa não veio um mordomo de labita abrir-me a porta para espreitar e ter a certeza de que eu vinha no interior do carro, recolhida no banco de trás e tão encolhida e acabrunhada que para sair com melhor cara ele teria que estender uma passadeira vermelha e fazer-me anunciar como uma rainha.

Havia na fachada do prédio, ao melhor estilo neoclássico, à altura do primeiro andar uma tabuleta de madeira pendurada por dois arames, com a inscrição do nome em letras brancas desenhadas num fundo azul e com uma estrelinha de cada lado a indicar que, contrariamente à ideia com que fiquei ao ver as fotografias na internet, o sítio não devia ter muita qualidade para me receber. Perguntei pela minha reserva a um funcionário que estava sentado atrás de um de um balcão com os cotovelos fletidos como se o peso que devia carregar sobre os ombros fosse tanto que o obrigasse a apoiá-los nalgum lugar. Tinha o ar distante de um copo de água fresca à chapa do sol no deserto e eu pensei que se vestia com tanto desleixo que não me apeteceria tê-lo por perto quando o calor começasse a apertar e me apetecesse pôr-me mais à vontade. De palma da mão direita estendida à minha frente, cumprimentou-me com repugnância por tê-lo despertado do estado de sonolência àquela hora do dia. Ainda por cima, tinha os dedos viscosos e os dentes amarelos que devia ser de lavá-los sem pasta. De seguida olhou-me de alto a baixo e deu-me a chave do quarto lembrando que aquele era um lugar de respeito onde não estava autorizada a receber namorados, e eu fiz-lhe sinal de que ia subir antes que me arrependesse de lhe ter perguntado vagamente onde havia um shopping onde pudesse fazer umas compras, não fosse ele pensar que fazia questão de que o tal namorado de que falava que eu ia arranjar para me divertir tinha que ser rico para me dar uma vida de luxo.

Subi carregando as minha malas por uma velhinha escada de madeira ao primeiro andar onde vi uma tabuleta e uma seta apontando os quartos à direita mas sem qualquer indicação que distinguisse o meu, donde pensei que ele não deveria ser grande coisa. Espreitei ao longo do corredor e vi que era o único que tinha a porta encostada como se último hóspede a ter ali passado a noite tivesse roubado todos os objetos de valor e o dono do hotel entendesse que a cama, as mesas-de-cabeceira e o que restara era tão mau que ninguém lhe pegaria e já nem valia a pena fechá-la na tranca.

Empurrei-a e acendi uma luz. Depois levantei os estores que estavam corridos para baixo e entrou tanta claridade no quarto que as manchas de humidade no teto devem ter ficado visíveis da rua. Dois candeeiros de cabeceira e uma estatueta de loiça em cima da cómoda ficaram maiores como se avançassem na minha direção. Olhei em redor e dei uns passou para o lado, como se esperasse ver sair de onde menos esperasse uma cadeira para me poder sentar e descansar as pernas ou uma cama onde pudesse repousar o corpo inteiro, mas fi-lo tão lentamente e em silêncio que se alguém caminhasse ao meu lado não me ouviria nem que lhe pedisse o favor de se desviar para poder passar. A cobrir a cama havia uma colha sarapintada de tinta branca, o que devia querer dizer que era tão antiga como uma relíquia do tempo dos primeiros profetas, pois o quarto a julgar pelo aspeto também das paredes há muitos anos não devia levar uma demão.

Sentia-me tão cansada que resolvi por de parte o meu sentido de observação. Deitei-me na cama, do lado em que a todo o comprimento havia o recorte de uma cova desenhada pelo peso de um corpo morto que deve ter chegado a decompor-se, tal era o cheiro que deitava o colchão e adormeci profundamente.

(TERMINA NA PRÓXIMA SEMANA)