Avó é ser mãe duas vezes

Sou a mãe que os meus netos gostariam de ter, simplesmente porque à minha filha falta a disposição que eu tenho para brincar no meio eles, sentada no chão da sala como se fosse a irmã mais velha que eles gostassem de ter.

Aos trinta e quatro anos, com a grande experiência de vida que já tem, vai no segundo casamento no espaço de quinze e pela parte de alguns dos antigos namorados, com quem voltou ao contacto através das redes sociais, já teria tido outros tantos relacionamentos extraconjugais.

Engravidou precocemente. Primeiro de um rapaz leviano que, ato contínuo a tê-la desonrado, desapareceu de tal forma da aldeia onde vivíamos, que só pode ter achado intempestiva a partida, quem não estranhou, nos meses anteriores, ter aparecido, não se sabia de onde, com uma mão à frente e outra atrás e um ar comprometido, como se de cada lugar por onde tivesse passado até à data, tivesse sido obrigado a fugir sob a acusação falsa de um crime que não tinha cometido.

Só a minha filha não viu logo que era um mulherengo e que se comportava, mesmo diante dela, como um playboy de terceira geração que, com o correr dos anos, deve ter melhorado a técnica de sedução, pois só assim tinha conseguido esconder-lhe o modo de vida errante durante o tempo suficiente para ela acreditar que trabalhava e ganhava a vida honestamente.

Nas costas dela, catrapiscava com uma mulher mais elegante que tinha menos de metade da idade que ele teria dali a dez anos e quando foi descoberto vim a saber que, com idênticas artimanhas, iludira também a filha mais nova do presidente da Junta, com falsas promessas que eram um relato fiel dos inflamados discursos de campanha do pai, de quatro em quatro anos.

Sem conhecer o paradeiro do progenitor, quem aceitou perfilhar a criança, foi o meu primeiro genro, que ela veio a conhecer na Faculdade de Letras, para onde foi estudar quando nos mudámos para a capital. Por causa da tendência que desde muito nova revelava para se apaixonar pelos homens mais velhos, estávamos convencidos de que, nem que fosse pelo da disciplina de que menos gostava, mais tarde ou mais cedo, seria um professor ou o pai de um colega que ela um dia levaria lá a casa para conhecermos.

Com efeito, assim veio a acontecer, mas antes, um dia, a seguir a uma prova oral cuja nota que era importante para dispensar o teste escrito no final do semestre, chegou a casa aborrecida e trancou-se no quarto sem querer ver nem falar com ninguém. No dia seguinte, fui bater-lhe à porta mas ela não abriu. Passou a manhã fechada, só saindo para ir à casa de banho e, uma vez mais, não quis comer. Ao terceiro dia, veio ao pé de mim e queixou-se de náuseas e enjoos, com sintomas de uma indisposição que não podia ter sido causada por nenhuma coisa que tivesses comido, porque estava desde a véspera sem se alimentar. Vestiu-se e quando saímos da farmácia com o teste da gravidez para fazer em casa, ainda antes de surgir na paleta a cor que indicava o resultado, já eu com o meu sexto sentido apurado tinha a certeza de que vinha mais um bebé a caminho.

Como era mais um menino, tiveram a ideia de pôr-lhe um nome igual ao do pai mas com Filho no apelido para se não confundir com um sobrinho que seria sensivelmente da mesma idade e tinha o mesmo nome, mas quando o casamento começou a descambar e o casal percebeu que não havia volta a dar para contornar os motivos da futura separação entre ambos, de pessoas e bens, por muito que o meu genro não quisesse que o filho dela lhe herdasse os bens, para estes não se dispersarem, teve de passar para o nome dela o monte que possuíam no Alentejo além do barco de recreio em que navegavam no Alqueva, para não ter de vendê-lo e, com a verba que conseguisse, pagar ao advogado que contratasse para tratar do divórcio litigioso com que ela ameaçava arrastá-lo na lama pelos tribunais até à quarta geração dos filhos dos netos de ambos.

Seguiu-se um caso passageiro da minha filha, com o pai de uma colega de outra turma que a levava lá a casa para estudarem em conjunto. Andavam na mesma Faculdade mas em anos distintos. A minha filha era ligeiramente mais velha e sentava-se no banco de trás, a vê-lo através do espelho, quando, na companhia da amiga, aceitava boleia dele para levá-la a casa, num automóvel que dava nas vistas porque era um modelo topo de gama e que deve ter-se tornado apertado para os três, porque no espaço de dias passaram a ser mais vistos a andar nele sozinhos a caminho de um motel, do que a carregar a pasta dos livros pelas imediações da Faculdade.

Foi um namoro breve, com a duração do tempo que ela julgou necessário para superar os traumas da recente separação do marido. Pelo meio e antes de qualquer envolvimento mais sério, ainda teve tempo para conhecer, de passagem pelo areal das praias da Costa de Caparica, um violinista polaco que quando acabou o verão viajou para a sua terra-natal e nunca mais foi visto; um pastor evangélico que tocava à flauta peças desconhecidas de Molière, descobertas ao acaso num caderninho de apontamentos que arrematou num leilão em Santa Maria da Feira e um pianista de bar alcoólico, que devia ser o último elo de uma cadeia de indivíduos que ela namorou ligados à música, porque depois dele somente conheceu um maestro espanhol a que ela não podia aspirar ascender porque era muito bem casado na altura com uma médica do hospital Amadora-Sintra e pai de filhos.

O terceiro filho dela nasceu fruto do seu segundo casamento, com o dono da banca de frutas, legumes e leguminosas, lá do mercado de rua onde íamos regularmente às compras e onde, por insistência posteriormente da parte dele, passámos a ir abastecer-nos à semana, carregando de tal forma tantas peras, bananas e maçãs para casa que, quem, como ele, não soubesse ser isso a base, tanto das nossas sobremesas como dos lanches que as crianças levavam para a escola, poderia pensar que dali levávamos coisas para ganhar dinheiro a vender noutro lado.

Desconfiado de que andávamos a enganá-lo, ele e a minha filha começaram a desentender-se, a discutir e acabaram por demorar menos tempo a separar-se do que ele a dar ouvidos a quem nos defendia e jurava a pés juntos que as suas ilações estavam erradas. Saiu de casa, numa véspera de ano novo antes de almoço, abandonando-a, a ela e ao filho de ano e meio nos braços, o qual já pronunciava de forma bem audível a palavra pai mas ainda estava longe de saber expressar-se corretamente e conseguir formar frases completas para poder, por exemplo e de ar enternecido, pedir-lhe que ficasse.

Novamente separada e sem trabalho, porque entretanto fora despedida da banca de frutas onde ele a empregou para não estar em casa à boa-vida, sob a alegação de que se enganava a dar o troco, em favor dos fregueses, foi vê-la deprimida entregar-se ao ócio e cair na tentação dos vícios do tabaco e de começar a ingerir uma grande quantidade de bebidas alcoólicas. Para se tratar, a conselho de uma amiga, começou a frequentar as sessões tardias de ioga, em casa de um mestre chinês que a mandava executar, com um parceiro à sua escolha, certas posições que era só quando ele os mandava parar que começava a sentir prazer.

Envolveram-se sentimentalmente, quando o mestre, reconhecendo nela uma invulgar capacidade de introspeção, a convidou para integrar uma equipa de estudo das técnicas do sexo tântrico aplicadas à resolução dos problemas mais prementes no casamento.

Em sua opinião, não havia problema que uma terapia de sexo não conseguisse resolver e assim, aos parceiros desavindos que o procuravam com problemas de variadíssima ordem, ele aconselhava a não enveredarem pelo divórcio e a substituírem pela ideia de serem as peças de roupa que trouxessem no corpo, os bens materiais que estivessem a pensar em arrancar um ao outro, entregando-se puramente ao ato de fazer amor, de preferência nas calmas para gozarem mais intensamente o momento em que atingissem simultaneamente o orgasmo.

Esta forma perfeita de se entenderem levou a que quisessem juntar os trapinhos, ou seja, os parcos haveres que tinham e alugar um apartamento na zona oriental da cidade. Ocuparam inicialmente um rés-do-chão, mas rapidamente passaram para um andar no piso mais alto do mesmo prédio, para fugirem ao barulho que vinha da rua, mais propriamente provocado pelo grupo de crianças que, quando saía da escola, batia com uma cana nas persianas que estivessem corridas, interrompendo a concentração aos participantes nas sessões de ioga que decorriam na sala, de luzes de cima apagadas e só iluminadas por umas velas que lhes conferiam o ambiente próprio das grandes ocasiões.

Mas depressa se arrependeram de se terem mudado para um bairro ainda mais pobre do que aquele onde se conheceram. O resultado disso foi progressivamente o mestre deixar de ter alunos. Se naquele, as pessoas não tinham recursos para pagar as aulas, do anterior onde moravam passaram a não poder ir porque tiveram de optar entre continuar a ter dinheiro para frequentá-las ou para comprar o bilhete de autocarro para lá chegarem, sem o qual não iam porque essa zona da cidade era demasiado distante para irem a pé.

Com o fim do negócio do casal, acabou o relacionamento mas não sem antes ter vindo ao mundo uma menina que pode não ter tido o condão de conseguir mantê-los unidos, mas serviu para animá-la mostrando que justificava acreditar num futuro melhor, no qual, para combater a ideia de um mundo dominado por homens sem escrúpulos, havia a esperança de singrar uma mulher que seria bondosa e bonita ou não incorporasse os genes do que de melhor havia tanto no pai como na mãe e com um pouco do meu feitio à mistura.

Para a minha filha, essa futuro risonho ganhou forma quando conheceu à saída de uma festa de verão numa discoteca, o meu atual genro, uma joia de homem que ela tem vindo pacientemente a lapidar, como se o valor dele não estivesse à vista no belíssimo carro que conduz ou nas camisas de seda que veste quando vem com ela cá a casa.

No passado domingo, ou seja ontem, celebrou-se em Portugal o dia de todas as mães e, à semelhança de há um ano, decidimos passá-lo juntas. Almoçámos fora e depois fomos a uma matiné para assistir a uma estreia que, ou eu muito me enganava ou já sabia que ia pôr-me de lagrimazinha ao canto do olho.

Resumidamente, pela mão de um realizador português que sonha emigrar para Hollywood, a fita falada em inglês conta a história de uma mulher ainda jovem que teve uma vida sentimental inconstante até encontrar a felicidade nos braços de um homem mais velho que a trata como a uma princesa e com quem, num desenlace de sonho, acaba por casar. Isto só foi possível com a concordância da Corte e dos súbditos do reino, mas, sobretudo, da mãe da rapariga que sempre foi da opinião de que, se da história de vida da filha não fosse possível virem a fazer um romance, com um pouco de boa vontade talvez fosse possível escrever nem que fosse uma crónica como esta.