Vector illustration. A ballerina in a blue tutu is dancing on the stage.

Bailarina

“Sou eu”, respondeu Margarida estendendo a mão para cumprimentar a professora Margot. Aos nove anos, era a aluna mais nova da classe de ballet daquele ano, no Conservatório Madeleine Rosay em homenagem à grande bailarina clássica nascida no Rio de Janeiro.

Para ela, ter superado as provas de admissão e estar a aprender com os melhores, foi o concretizar dum sonho que, nalguns casos, atravessa gerações e vai calhar num neto. No caso dela, já ouvira a história de que dançar teria sido o modo de vida do avô, se não tivesse tido de largar a escola, muito cedo, para ajudar à tarefa do pai de pôr de pé uma pequena casa e tornar rentável a exploração dum terreno que arrendara em Guarulhos, Estado de S. Paulo.

Uma parcela de terreno que foi aumentando e do qual viria, anos mais tarde, a tirar, não só o sustento para o dia-a-dia, mas também o modo de viver que permitia dar-lhe de igual forma aos onze filhos, a possibilidade de estudar e poderem formar-se naquilo em que melhor achavam que encaixava o seu talento.

O pai de margarida herdara uma devoção às artes, em particular a música, tão improvável, por ter sido criado no ambiente duma quinta, como o facto de aos dez anos já dedicar uma grande parte do tempo a ouvir, numa grafonola antiga, discos emprestados ao pai, das principais sinfonias de Beethoven, dirigidas pelos maestros mais virtuosos da época.

Um deles, alemão de nascimento, viria a conhecer em Paris, no âmbito de um encontro casual e, desse profícuo encontro, nasceria uma parceria para a vida, uma amizade à qual Margarida ficaria vinculada por ter sido a partir dela que nasceu o sonho de poder pisar os grandes palcos.

Margarida nasceu de parto natural, em agosto, no rescaldo de um dia que não deixou indiferente quem achava estranho temperaturas superiores a trinta graus para a época.

A mãe, uma mulher virtuosa e avançada para a época, não quis ainda assim alhear-se da tradição familiar e escolheu tê-la em casa, renegando a ideia de maior segurança na maternidade, aonde não havia escassez de meios, do que nas mãos de uma parteira experiente, mesmo no caso de vir a precisar de ajuda.

Trazia muito cabelo e notas dissonantes num choro irrefletido que não traduzia o receio de não estar entregue num colo seguro. Media cinquenta centímetros e pesava três quilos e quatrocentos, e tinha uma face rosada igual à de todos os bebés que nascem por fora com o ar aparente de ter os órgãos saudáveis.

Passava das vinte horas e o pai foi vê-la com um bouquet de margaridas que não cabia numa jarra não preparada para receber flores à medida dum homem tão apaixonado. Sem perder tempo, pediu à enfermeira um balde com água e desatou a admirar a filha, tirando parecenças com familiares à beira dos quais nunca, como naquele dia, tanto apeteceu sorrir e gritar à janela que era um homem feliz.

Custava a compreender que aos quatro anos, predestinassem a Margarida um futuro risonho. Mas é que já revelava uma inteligência emocional e um desejo de aprender a dançar tão grande, que só não acharia estar a assistir ao nascimento duma estrela, quem fosse cético ao ponto de achar que, não cabia no emaranhado do nosso sistema, nenhuma outra a não ser o sol.

Vendo nela uma vontade indómita de aprender, mas temendo um distúrbio de ordem emocional, os pais levaram-na então, primeiro à consulta de uma psicóloga habituada a lidar com a ansiedade na idade pré-escolar; e depois à de uma terapeuta, na esperança de saber se implícito ao estado de obsessão, estaria uma necessidade de intervir de modo especial no método de ensino das restantes matérias do jardim de Infância.

Passado pouco tempo, verificaram que foi em vão que perderam tempo e despenderam dinheiro, à custa de não terem seguido a ideia inicial da professora do 1º Ciclo, que dava como frustrada a aposta de quem visse nela, a longo prazo, uma advogada ou médica brilhante, à custa de ter-se perdido uma bailarina, que em comparação podia auferir menos, mas daria a conhecer uma forma de se expor à arte que só podia ser narrada através dum poema.

Na véspera de completar os sete anos, Mariana foi surpreendia pelos pais, que a inscreveram na Academia de Dança de Madame Karenina, e assim, à hora a que supostamente estaria na escola se não tivesse encerrado por falta de água, iniciava uma aula experimental de dança que valia mais do que experimentar metê-la numa atividade para a qual não tivesse jeito.

Karenina era uma exilada da extinta união Soviética, que viajara incógnita à boleia do passaporte falso de uma cidadã cubana que nunca entrara no Brasil. Na época da década de quarenta, circulavam no interior das grandes cidades imensos estrangeiros, de características diversas de acordo com a sua proveniência, que passou despercebido às autoridades alfandegárias do porto de Santos, ver entrar por ali adentro uma cubana de pele clara, coberta de peles a falar com sotaque russo.

Tinha para cima de oitenta anos, e as suas memórias quase remontavam ao tempo dos czares. Ensaiava as alunas sentada num banco de madeira, ao ritmo de pancadas de bengala no soalho, lembrando as de Molière, como se fosse para anunciar a hora de levar à cena uma Peça.

Franzina, denotava a insegurança de uma criança do primeiro grau de ensino a quem exigiam que respondesse acertadamente a perguntas do segundo ano. Estavam a tremer-lhe as pernas, mas não vacilava e perante o desafio, disposta a dar o melhor, era como uma gigante com os pés assentes no chão e a cabeça à altura de ter de usar as mãos para afastar as nuvens do rosto. E ora de tranças, ora de rabo-de-cavalo, gostava de apanhar o cabelo de um jeito que dava pena não conseguirem fazer igual, até colegas de turma que se gabavam de ser mais bonitas, mas não viam que perdendo em comparação com ela, só a Margarida uma professora atenta em matéria de beleza daria nota positiva.

Margarida olhou para Karenina com olhos rasgados como os de uma boneca de porcelana chinesa do Séc. XVII e com gestos lentos a imitar a técnica de levitação das aves, ia compondo a figura duma bailarina que dançava encantada ao som das notas dum piano que tocava Chopin.

Frédéric Chopin que viria a apadrinhar a aula de estreia da professora Margot. Nos últimos dois anos, ouvira muitas das Peças para piano, tempo bastante para ter-lhe passado o sonho de viajar até à polónia, terra natal do pianista, se não tivesse incrementado a vontade de estudar e o gosto de ouvir cada vez mais música clássica.

Consciente da importância de causar boa impressão a Margot, mal dormira nessa noite, hesitando entre fechar os olhos para adormecer profundamente e repousar o cérebro ou sonhar que nesse dia regressava a casa feliz por tudo ter corrido maravilhosamente bem.

Vestiu-se a rigor como uma noiva que escolhe a vestimenta para subir ao altar: um par de collants confortáveis que permitiam a elasticidade dos movimentos; uma saia de tule que os enchia de graciosidade e um top de alças finas com as costas à mostra para se ver até onde, numa dança a pares, um parceiro estaria autorizado a encostar a mão para conduzi-la na pista de dança.

Em Paris, a professora Margot aprimorara o gosto pelo estilo de “Ballet Blanc”, pondo a ênfase na bailarina ao estilo dos pintores renascentistas que, nas suas principais obras, era sempre uma mulher que punham em destaque. Alta e adelgaçada, Margot tinha um busto atlético, usava um carrapito na cabeça que lhe adulava o rosto e modos altivos, como os de um mestre-de-obras que dá as ordens gritando para impor respeito aos homens.

Vendo que Margot se distraíra com um grupo de alunos, Margarida suspirou e imaginou-se protagonista ao centro da pista, numa coreografia em que, mesmo de costas, na professora causaria grau de satisfação suficiente para convidá-la a voltar no dia seguinte, mas disposta a passar mais tempo para exemplificar aos colegas como se fazia um plié perfeito.

E já ia a meio a aula, quando Margot lhe fez notar que contava consigo para figura de destaque no espetáculo de final de ano. Não que lho tivesse dito nem mandado dizer por ninguém. Mas foi assim que a jovem interpretou ela ter sugerido aos pais que doravante viessem mais cedo e fossem buscá-la mais tarde, porque talento requer treino e treino exige trabalho com o olhar fixado nas metas distantes que se almeja alcançar.

FIM