Bengaladas e vassouradas

No final de mais uma sessão de bengaladas e vassouradas, ainda tinham energia para se irem divertir no Bairro Alto, mas se somassem o tempo que passaram deitados um sobre o outro a fazer amor, teriam podido subir a pé a Serra de Sintra, que era, quando restabeleciam a paz, de onde mais gostavam de assistir de mãos dadas ao romper do sol, rasgando a linha do horizonte.

Paula e Carlos mantinham uma espécie de relação amor-ódio, que havia mais tarde ou mais cedo, de culminar em casamento mas não sem antes terem experimentado juntar os trapinhos, só para terem a certeza de que na gaveta onde ele arrumava as meias, ainda sobrava espaço para ela pôr tantos soutiens e cuecas das mais diversas cores e feitios.

Tinham começado a namorar na Faculdade, mas as picardias entre ambos vinham de trás. Tinham sido colegas no secundário e à época em que Paula se tornava uma proeminente líder da Associação de Estudantes, ele incorria numa pena de suspensão das aulas por mau comportamento numa sala de aulas diante de um professor que haveria de chumbá-lo sem ser por faltas.

Conheceram-se quase casualmente, por intermédio de um amigo comum que deve ter-se arrependido de tê-los apresentado num dia de dérbi que terminou empatado entre Benfica e Sporting, revelando-se decisivo para as contas do campeonato que terminou ganho pelo F.C.Porto. Começaram a desentender-se na questão de apurar quem praticava futebol de melhor qualidade e terminaram a discutir pormenores da arbitragem, como se importasse apurar que equipa tinha beneficiado de maior número de livres diretos à entrada da grande-área, como aquele de onde saiu o pontapé vitorioso de Lindelof na mais recente partida disputada entre os dois clubes.

Depois, ainda não convencidos de não terem arranjado argumentos para também derrotar o adversário fora do retângulo de jogo, foram dali com o amigo, jantar numa pizaria muito em voga, onde havia um empregado a contas com tantos clientes para atender ao mesmo tempo, que chamava a atenção andar de camisa branca mais suada do que estariam as de alguns jogadores que à mesma hora ainda estariam a disputar o jogo de futebol no estádio da Luz.

Foi a primeira de muitas vezes em que dali em diante saíram juntos, nem sempre de acordo com o dia e a hora a que pretendiam ir, não porque ele não gostasse de sair, mas era porque quando o clube dele perdia ficava sem vontade de ir para lugar nenhum e só lhe apetecia enfiar a cabeça no travesseiro a chorar.

Talvez com receio dos ciúmes de Carlos, ao princípio de saírem, Paula evitava vestir roupas apertadas ou que lhe deixavam o corpo à mostra, evidenciando curvas em que a meio caminho para algum lado, a mão masculina derrapava quase sempre para zonas onde a rapariga se sentia pouco à-vontade. Consciente de que, talvez por causa dos ciúmes, o rapaz detestava vê-la na rua naquilo que classificava de trajes menores, Paula sabia que o seu gosto peculiar pelas peças de roupa usadas pela maioria das jovens da sua idade suscitava no rapaz um estado de nervos impróprio que só podia ficar a dever-se a ele achar que sair consigo meio-despida era uma dica que ela estava a dar-lhe para irem à pressa enfiar-se numa loja de pronto-a-vestir de um qualquer centro comercial, a pretexto de ele comprar para lhe oferecer todas as calças, casacos e camisolas que vissem pela frente e ele achasse que estavam em falta no seu minúsculo roupeiro.

Pouco tempo depois das primeiras saídas, longe dos olhares indiscretos, começavam a frequentar a casa um do outro, e o que parecia um namorico sem importância deu lugar a uma relação que foi evoluindo à medida que cada um aprendeu a dar menor valor às ideias subjacentes nas críticas que o outro lhe fazia. Por conseguinte, nem Carlos teve de reduzir-se à figura de um intelectual baseado no facto de ela criticá-lo por unicamente ouvir música clássica, nem Paula à de uma pessoa rudimentar por não gostar daquele género musical num país onde a esmagadora maioria da população envereda pelo estilo pimba.

Na celebração dos primeiros dois meses de estarem juntos, o que ele lhe comprou foi um anel com uma pedra incrustada muito brilhante como se fosse para desviar a atenção de que era feito de uma liga a imitar o ouro, de apenas nove quilates. Era no entanto vistosa, mas o que ainda mais despertava a curiosidade, de quem lhe olhava para o dedo pouco preocupado em saber em que direção apontava, era a falsa pedra ter o formato de uma estrela que deveria ser como o sol mas estar no centro de uma galáxia com, pelo menos, o dobro do tamanho do sistema solar.

A princípio encantada, Paulo achou-o digno de uma princesa em cuja posse era impossível que houvesse algo mais valioso. Tratar-se-ia de, entre a rapariga e o objeto, estabelecer-se um amor à primeira vista, não fosse ela tê-lo reconhecido por tê-lo andado a namorar, até vir a descobrir que, pelo preço por que o tinham colocado à venda, ele não podia ser senão uma vulgar bijuteria. Tão barato, a imitação da pedra não podia ser senão de vidro, se bem que por meio de uma análise mais cuidada se via claramente que a composição daquele material atirava mais pró plástico, em lugar da matéria de que eram feitas as estrelas.

Furiosa, Paula passou-lho para as mãos, juntamente com uma pá e uma vassoura que foi buscar, para ele varrer os cacos em que o mesmo haveria de ficar, mal lhe pusesse ambos os pés em cima. Coagida a reforçar o seu desagrado, ainda o insultou e por fim instou-o a, no prazo de vinte a quatro horas, lhe comprar um presente melhor, pondo-o de castigo, passando, durante uma semana, a dormir afastada dele na cama, como se sexo com o namorado só valesse a pena quando, após uns dias de abstinência, para fazer as pazes ele viesse com o dobro da vontade.

Mais tarde, discutiram por ciúmes de uma ex-namorada de Carlos que repentinamente apareceu do nada e que do antigo namorado dizia gostar apenas como irmão, mas em quem Paula não confiava ao ponto de achar que não seria capaz de cometer incesto. Mas bengaladas e vassouradas à parte, entre o casal corria tudo muitíssimo bem. Dessa vez ele esteve duas semanas sem fazerem amor, porém, quando ela percebeu que incorrera num erro e entre os dois jamais alguma coisa haveria de se passar, deu-lhe um abraço e foram ver, do ponto mais alto da Serra de Sintra, o pôr-do-sol, que noutro ponto do hemisfério deveria estar a anunciar o dia a começar para outro casal de namorados.