Birgitte Bardot

Das semelhanças físicas com a atriz francesa que na década de sessenta causou furor entre ao amantes do cinema, ninguém a livrava, nem ela se importava de ser confundida com nenhuma cidadã europeia, desde que não fosse oriunda de um dos países do sul intervencionados pela Troika, para não ser afetada pelas medidas de austeridade e perder rendimento por via da aplicação da sobretaxa do IRS ou dos cortes generalizados nas Pensões de Reforma.

Ouvia falar dela desde menino, mas nunca pelo seu nome de batismo que era Rosemary Eliane Purificação Andrade da Silva, conforme lavrado a páginas tantas nos autos das crianças nascidas no ano de mil novecentos e trinta e dois na cidade do Recife, capital do Estado brasileiro do Pernambuco, situado no nordeste do país. Famosa por ter feições delicadas como as de Brigitte Bardot, que encantava miúdos e graúdos, dava a conhecer-se ao mundo por Birgitte Bardot. Conheciam-na, porém, pela Puta de Francelos, quem não frequentava as salas de cinema da época nem via filmes em casa, numa época em poucos portugueses se podiam dar ao luxo de ter um aparelho de receção do sinal de televisão em casa e em que não proliferavam, como hoje em dia, as revistas da chamada imprensa cor-de-rosa que dão a conhecer à generalidade das pessoas a vida privada tornada pública de todas as estrelas da sétima arte.

Esperava, após ter passado nem que fosse meia hora com ela, ouvir uma crítica favorável à minha performance sexual, mas a que não daria muita importância porque, como fomos logo a seguir ao jantar, era provável que nesse dia ainda tivesse tido poucos clientes e, portanto, quase ninguém para servir como termo de comparação.

Eu e o meu amigo Sérgio Martins, fomos nesse dia de carro, desde a zona de oliveira do Douro para conhecê-la, mas na firme disposição de ter percorrido se necessário uma distância três ou quatro vezes maior, só para escutar dela um elogio que nos revigorasse do cansaço das aulas que tinham terminado há dias e, ao mesmo tempo, nos engrandecesse o ego.

À distância a que a vislumbrámos, iluminada à luz ténue de um candeeiro que podia apagar-se para dar a vez ao luar sob um céu sem nuvens, a primeira impressão que tivemos não foi das melhores, nem das mais agradáveis. Mal se endireitava de pé e, à semelhança dela, a ponta de cigarro que ardia nos lábios e, mal ela ganhava fôlego para dar uma passa, se acendia como se emitisse um sinal intermitente alertando-nos para nos mantermos afastados.

Aparentemente, mantinha uma conversa animada com outra puta mais nova, que vendo-nos, se afastou da sua presença, não para facilitar a nossa escolha, mas para se certificar de que era em sua direção que olhávamos desde que saíramos do carro do meu amigo que ficara estacionado na rua de baixo a uma escassa vintena de metros dali andando em linha reta.

Depois, vendo que não era para si que nos encaminhava-mos, pôs-se a chamar-nos enternecida e desatou a gesticular com as mãos, dando logo a entender, a quem até ali não intuíra o objetivo da nossa ida ao local, o que era suposto terem ido lá fazer dois jovens de ar simpático com pouco mais de dezoito anos, como nós, que só para se haverem deslocado na viatura verde de capota preta mas que não era um táxi, até uma zona de putas finas como a rua Santos Pousada, no Porto, teriam gastado os duzentos e cinquenta escudos que juntos traziam nos bolsos das calças.

Para causar uma boa impressão, o Sérgio Martins tinha trocado as sandálias de andar pela rua à noite quando o calor apertava e ia até ao café ter palrar com amigos, pelo novo par de ténis para jogar futebol-salão da francesa Le Coq Sportif, com que a mãe o presenteara pelo sucesso obtido na prova de final de ano de Matemática, mas eu, mesmo por barbear e com o cabelo desgrenhado como se me tivesse surpreendido um tufão à passagem pela minha cabeça, em nada ficava desfavorecido perante a imagem daquela mulher que se assemelhava a um edifício em ruínas. Estava pobremente vestida e deve ter envelhecido precocemente, com tantas rugas de expressão no rosto quanto os corações que deve ter quebrado quando aos trinta anos a achavam parecida com a atriz gaulesa, de pele muito branca, em contraste com a sua que era como a de uma mulata, estava ressequida e gasta de exercer a profissão de noite e de dia, exposta ao calor ou á intempérie. Foi uma das primeiras tatuagens de um hieróglifo chinês que vi no pescoço e tinha braços e pernas robustos, como se descendesse diretamente de uma família de lenhadores que, ao invés de com agrado tê-la visto partir, certamente teriam preferido mantê-la ao serviço para executar o trabalho pesado que deve ter ficado ao encargo da mãe. Todavia, possuía o ar satisfeito de quem tem uma irmã mais nova e reconhece nela inteligência suficiente para, tendo aprendido com os erros que a viu cometer, optar por seguir uma carreira diferente e diametralmente oposta da sua.

Nem eu nem o Sérgio Martins queríamos falar do passado, mas se a senhora diante de nós tivesse continuado a desconfiar e a perguntar-nos a idade pensando que eramos menores, eu ter-lhe-ia contado, só para tranquiliza-la, que era adulto e talvez lhe escrevesse no verso do Bilhete de Identidade a minha idade em números garrafais, desde que coubessem no espaço junto à data de nascimento, que assinalaria sublinhando com caneta vermelha, ou contasse daquela vez em tentei comer uma coleguinha de turma e ela só não quis porque, com a minha mania de andar sempre com a mesma roupa vestida, parecia um repetente e ela metera na cabeça que era muito mais velho. Talvez lhe dissesse como um dia consegui fintar um porteiro de discoteca e entrar aos dezasseis numa zona de acesso reservado a maiores e como sempre digo que somos gémeos, embora falsos para justificar as diferenças que existem entre nós, ao Sérgio bastaria acenar concordando comigo porque o que é válido para mim, também se aplicaria a ele, exceto na parte em que não quis comer a minha amiga porque sabendo da preferência dela por colegas mais novos, e para não ser rejeitado, quis logo sair com uma amiga dela mas sem dizer que era meu irmão para não pensar que ficava com as sobras.

Cumprido o protocolo das apresentações, ia eu instruído de que para entabular conversa com uma puta é no assunto do seu passado que não devemos tocar. Deixá-lo ficar onde, para não tomarmos conhecimento dele, a puta possa esquecê-lo ou mantê-lo guardado a sete chaves, como um baú num recanto da memória ou no fundo da gaveta onde, juntamente com as camisas que não veste há anos, repousam os antigos álbuns de retratos lá em casa, onde não gosta de levar os clientes porque desconfia daqueles que nem dinheiro têm para pagar o quarto num motel.

Melhor parte do dela, devia resumir-se em poucos parágrafos compostos por pequeníssimas frases sem vírgula, até ao momento em que, após uma tentativa frustrada que acabou num bar de alterne em Amarante, resolveu sair de casa e ir até ao coração da cidade invicta, que nem a morar ao fim de um ano ficou a conhecer tão bem que até de olhos fechados o pudesse mostrar, como fazia com o corpo, aos turistas, sobretudo americanos, que a procuravam e, em busca de prazer, para o calcorrearem com as mãos dispensavam um mapa para se orientarem.

Sérgio Martins, que era mais experiente do que eu em matéria de relacionamentos sexuais que resultavam de encontros esporádicos, deve ter achado que não valia a pena ali estarmos e fez-me um sinal com a cabeça. Deve tê-la despido com o olhar, porque apagou-se-lhe do rosto o entusiasmo inicial com que já não o via desde a subida do Boavista ao principal escalão do futebol em Portugal. Pelo desagrado, nem me atrevi a perguntar-lhe se estava tão desapontado pelo aspeto e pela conversa da puta como quando, poucos anos volvidos o clube foi remetido para a segunda divisão ou, pior ainda, viu o histórico Salgueiros classificar-se para a taça UEFA num ano em que acabou o campeonato na segunda metade da tabela.

Piscou-me o olho que era o sinal que combináramos para o caso de alguma coisa correr mal e termos de dar à sola, como se tivesse medo de que a célebre Puta de Francelos lhe pedisse que passasse para a mão dela todo o dinheiro que tínhamos e não tivesse troco para nos dar.

Parece que volvidos mais de trinta anos, ainda a vejo, de pernas abertas como se fosse um homem, a conversar satisfeita com a puta mais nova que se chamava Rosete e viemos a saber inspirara os Táxi numa canção do seu primeiro álbum, ajudada pelo vento a soprar o fumo do cigarro para mais distante do que o lugar de onde deve ter pensado que nós vínhamos, por causa da teimosia do meu amigo Sérgio Martins que, para se armar em bom, tinha a mania de falar à maneira dos mouros de Lisboa.

Vem isto a propósito, a ideia de evoca-la, a propósito de uma notícia que saiu esta semana a dar conta de que Birgitte Bardot, a Puta de Francelos, é a mais antiga puta a exercer a atividade em todos os países da zona euro.

Atualmente com oitenta e três, não pensa reformar-se antes de atingir os noventa, e até já prometeu mudar o nome artístico, de Birgitte Bardot para Miss Marple, velhinha e discreta personagem dos policiais de Agatha Christie, simplesmente para que não vá ao engano, quem vá à sua procura pensando que vai encontrar outro género de mulher, e depois se sinta tremendamente dececionado.

Aqui vai para recordar a música dos Táxi “Queda de um anjo” que fala da Rosete: