Brincar: Dos Anos 80 ao Século XXI

“Primeiro a obrigação e depois a diversão!” – dizia a minha mãe quando lhe pedia para ir brincar antes de fazer os trabalhos de casa. Nós, conceções dos anos 80, fomos crianças de madrugar e de não parar até depois do sol se deitar. Víamos a abertura dos poucos canais que havia, devorávamos os programas infantis, assistíamos aos concursos e aos filmes, e depois do jantar e do Vitinho, que em dias da semana marcava a hora de ir para a cama, nada melhor do que ter a família reunida pelos sofás da sala a ver as telenovelas brasileiras.

Mas os dias não eram passados em frente daquele cubo grande, de ecrã pequeno! As famílias juntavam-se e passeavam pelas estradas nacionais, sem destino, apenas pelo prazer de ‘ir dar uma volta’, conhecer, ver e ser visto. Quando não o fazíamos e não havia escola, tínhamos tempo, disponibilidade e amigos por perto para criar os nossos brinquedos e brincadeiras.

Nos carros não era obrigatório a existência de cinto de segurança e, quando sem a boleia dos pais, andávamos a pé ou de bicicleta para qualquer lado, levávamos os brinquedos nas mochilas, para o recreio da escola ou para a rua – onde ficávamos sozinhos a brincar, com os amigos, sem telemóvel ou chave de casa! E saltávamos ao elástico, jogávamos à bola, com os berlindes, com o pião ou com o ió-ió, brincávamos às escondidas, à cabra cega, ao lenço, ao telefone estragado, à estátua, ao mata e competíamos com o Tetris até a mãe nos chamar. Nos dias de chuva, ficávamos em casa com a família, a ouvir o rádio ou de olhos postos naquele ecrã de imagem ruidosa e de som distante.

Sem dar pelos anos, estreámos os 90, quando o mundo e a tecnologia entram por Portugal adentro e entranham-se nas nossas calçadas. Agora os brinquedos eram outros: conhecemos o walkman, que passou a ir connosco para todo o lado, tal como os seus auriculares grandes e fofos com que ouvíamos a rádio ou as cassetes [K7]; chegou o Tamagotchi, posto no aro das chaves de casa entretanto adquiridas e que morria constantemente; tocávamos nas campainhas dos vizinhos e fugíamos – marotas!, jogávamos ao Bate-Pé, ao STOP, ao “Quantos Queres?”, e entre alguns dos jogos tradicionais atrás mencionados, atirávamos os pega-monstros aos tetos e as bolas saltitantes pelas escadas abaixo; começamos a receber, e a gastar, a semanada nas Gorila, nas Chiclets, nas Bombocas, nas gomas, nas batatas fritas que ofereciam os Tazos, nos cromos e cadernetas ou nas arcadas.

Ainda se contemplava a caixa mágica de ilusões da sala, agora com três, quatro canais, recheada de contos da Disney e de filmes de ‘domingo à tarde’ mas era-nos preferível estar no quarto com os vizinhos, a brincar com ao quarto escuro (ihihih), a jogar jogos de tabuleiro ou com o Traço Mágico. Com os Legos ou os PlayMobil, o Mikado, o Tommy Turbin’ Turbo, os Hot Wheels ou os MicroMachines pelo grande tapete de estradas a percorrer. Brincávamos com a Barbie ou com o Meu Pequeno Pónei, os Pinipons, a She-Ra, o Conan, o He-Man, o G.I. Joe ou os Transformers. Jogávamos A Lenda de Zelda na Nintendo, ou o Sonic na Megadrive, ou simplesmente dedilhávamos um almanaque do Tio Patinhas, do Mickey ou do Astérix. Tínhamos a televisão do quarto na MTV a toda a hora, pulávamos ao som do rock e do grunge e víamos o “Beavis and Butt-Head”. Surgiram os Compact Disks (C.D.), que revolucionaram o universo da música e os computadores, com o Dos Windowns 3.1, onde trabalhávamos e jogávamos no MS-DOS, que vinha com o Minesweeper, o PaintBrush e o Solitário!

Depois do jantar a escutar o Jornal da Noite, já não se ouve o Vitinho e começa a ‘luta pelo comando’ – a mãe quer ver a telenovela, o pai prefere os concursos ou os filmes, e o quarto passa a ser o nosso lugar de eleição.

Em meados da década, é-nos apresentada a PlayStation e a internet arromba pelas nossas casas e começamos a envolver-nos no tempo sem tempo em frente daquele enorme aparelho, enquanto se tenta abafar o som frenético e denunciante do modem, às tantas da manhã, só para ver quem estava no MIRC.

Tropeçamos no ano 2000. E depois da tranquilização da população face ao suposto ‘fim do mundo’, apercebemo-nos de que entramos no século XXI, futuro retratado em vários filmes ao longo dos anos e diga-se que os realizadores desses mesmos filmes iriam ficar, ou ficaram, desiludidos com a realidade atual – onde está a “Hover Board”?

Os tempos livres deixam de ser ocupados com a família e ‘preferimos ficar em casa’ ou ‘ir ter com os amigos’ quando os pais saem. No quarto, os brinquedos industrializados, a televisão e o computador substituem as brincadeiras sociais e criativas, seduzindo-nos ao espaço fechado e isolado.

Nas horas de convívio, ainda se joga com a PlayStation, 2 e 3, ao UNO, ao Pictionary, ao Party&Co. mas as noites de sexta e sábado são maioritariamente acompanhadas pelos amigos entre notas de música demasiado elevadas. As tardes são no café e, assim, os dias começavam apenas a meio da manhã ou do próprio dia.

Correm dez anos e estamos em 2010, onde os adolescentes dos anos 80 se tornaram crescidos e as brincadeiras são restringidas ao íntimo do lar. Entretanto rompem novas gerações de adolescentes, habituados e adaptados às tecnologias desde nascença.

Vemos muitos que ficam por casa, colados aos computadores cada vez mais funcionais e aos variados tipos de dispositivos móveis, que ajudam a passar o tempo e permitem toda a socialização e entretenimento possível.

Mas há ainda quem conviva, há mais meios de transporte, sítios para onde ir e mais para fazer. Vemos toda a gente por todo o lado mas sempre, sempre de mão dada ao telemóvel. E de ansiedade fulminante de se sentir em perpétua comunicação com os que estão do outro lado do visor, intercalando as conversas cara a cara com selfies, na troca de mensagens escritas, no acesso às redes sociais, bloqueando assim o contacto visual e a profundidade das relações. As crianças, por sua vez e em qualquer lado também, entretêm a alma e dão sossego aos adultos enquanto estão focadas nos tablets.

O primeiro brinquedo do bebé é o adulto, que o faz observar e desejar a exploração do mundo. Será a função dos adultos, dos pais, educadores e professores a de preparar as crianças para a aproveitação destes equipamentos, condicionando o seu uso, criando regras e valorizando cada momento possível passado entre os seus pares, amigos e família.

Desliguem, ou coloquem os dispositivos em silêncio, na hora do jantar. Juntem-se à mesa e partilhem o vosso dia. Façam perguntas e ofereçam respostas. Essas são informações que não se encontram no Google.