Calma com o Calvão!

Calvé e o ministro Calvão da Silva, tal como os frascos de molhos, de pernas para o ar, politicamente falando. Calvície a propósito de dizer coisas que não lembram ao careca. Várias piadas poderiam ser ditas acerca deste precário ministro que, subitamente empossado em missões governativas – de uma duração estimada inferior em número de dias ao número de milhões de Euros que Ricardo Salgado recebeu como prenda de um construtor civil num gesto que o Calvão jurista apelidou de legítimo e normal – teve de acorrer a uma calamidade pública como a que aconteceu em Albufeira, sem saber muito bem o que fazer ou o que dizer. Entre piadas, acusações de que bebera demasiado ao almoço ou simples sátira do seu recorrente apelo ao divino para explicar o sucedido, o meu feed de Facebook ficou repleto de legítimas, embora superficiais, menções críticas às inusitadas declarações do futuro ex-ministro da Administração Interna Calvão da Silva.

Ora, o que aqui proponho é que temos de ter calma com o Calvão. Calma com o Calvão, não porque o que tenha dito não tenha sido grave, mas precisamente pela sua gravidade. Pela sua dimensão implícita, é importante perceber o significado daquilo que Calvão da Silva disse, em vez de rapidamente o qualificarmos como gafe e, com isso, o desviarmos de uma análise significacional que, parece-me, é aqui relevante. Façamo-la, portanto, de modo breve, destacando dois aspetos.

Individualismo puramente competitivo. Calvão da Silva sublinhou de modo insistente a importância dos seguros, afirmando que era “fantástico” que as pessoas estivessem conscientes de que “há outros mecanismos para além dos auxílios estatais” para depois, falando dos que não tinham seguro, dizer: “Eu sei que há muitas carteiras magras. Mas está a falar com uma pessoa que nasceu em Trás-os-Montes, que sabe o que é ser pobre e vir do pobre e tentar ser alguém. A mobilidade social funciona para todos. E todos temos de ter a nossa responsabilidade”. O facto do futuro ex-ministro, perante o desastre que ocorreu,  enunciar primeiramente a divisão entre os comerciantes com seguro e sem seguro e o culto do self-made man em jeito de auto-elogio mostra uma visão do mundo em que o principal eixo de relação entre os indivíduos é de competição. Ora, o que um autêntico governante faz nestas alturas é, precisamente, o oposto: é apelar à cooperação. Mais do que uma gafe, esteve aqui em jogo uma visão segundo a qual o indivíduo é indivíduo sobretudo por oposição face a outros.

Contaminação da ação política com a religião. A fé e a sua livre demonstração pública são um direito humano fundamental e a história está repleta de homens e mulheres brilhantes profundamente crentes em Deus. Assim, não cabe à política limitar a liberdade de culto. No entanto, por outro lado, não cabe à religião imiscuir-se nos assuntos da Cidade. In extremis, a afirmação política da conceção religiosa do mundo conduz à desculpabilização das misérias desta vida com as maravilhas da vida eterna que aí vem.  Disse-nos o provisório governante Calvão o seguinte: “A fúria da natureza não foi nossa amiga. Deus nem sempre é amigo, também acha que de vez em quando nos dá uns períodos de provação.” Ao identificar o sucedido como uma provação divina, e remeter para uma justificação religiosa dos acontecimentos em vez de traçar caminhos concretos de ação futura, Calvão da Silva foi um político a olhar para cima em vez olhar para o lado. Não é para Deus que ele, publicamente enquanto ministro, tem de olhar. É para os cidadãos, para as pessoas. E, já agora, para as pessoas com seguro  e para as pessoas sem seguro.

Disse-nos Aristóteles, na sua célebre “Política”, que “só o homem sente o bem o mal, o justo e o injusto” e que “é a comunidade destes sentimentos que produz a cidade”. Não é apenas pela claríssima falta de talento comunicativo que as declarações de Calvão da Silva nos devem chamar a atenção. É, sobretudo, por tais declarações deixarem antever pontos de vista implícitos que chocam com a “comunidade de sentimentos” que reside na base da nossa atual democracia representativa.