Cem

Não podia haver coincidência entre o anúncio para breve da entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra e o meu velho pai ter escolhido naquele fim-de-semana levar-me com ele à caça e deixar-me apontar com a carabina aos patos, aos quais, sobrevoando o que restava da planície em direção ao mar, jamais poderia passar pela cabeça que eu estivesse tão nervoso.

Um ano antes, o Presidente do Ministério, Bernardino Machado decretara que se organizasse e procedesse ao envio de destacamentos militares para Angola e Moçambique. E recentemente, em Março, a Alemanha declarara guerra a Portugal, na sequência da apreensão dos navios de bandeira alemã ou austríaca que estivessem ancorados nas nossas águas.

Até àquela idade dos vinte anos, crescera privado da atenção do meu pai, que passava demasiado tempo fora de casa a trabalhar e infelizmente geria o tempo livre que lhe restava tão mal como aquelas pessoas de quem nos fartamos facilmente porque se queixam constantemente de que não lhes sobra tempo para nada.

Herdara do meu avô um pequeno património, mas desde muito novo era ele que geria a pequena oficina de ourives onde os dois artífices contratados executavam por encomenda peças em ouro de filigrana que, só por serem muito pequenas, eram as únicas que podiam ainda aspirar vir a ter os ricos menos abastados da cidade.

Vivíamos razoavelmente bem, numa zona nobre dos arredores de Lisboa, rodeados de mansões ajardinadas que lembravam os palacetes dos consulados portugueses no estrangeiro, onde o meu pai tinha imensos amigos. Sem, no entanto, o conforto dos clientes ricos do meu pai que compravam aos pares as peças de maior dimensão só para poderem oferecê-las às amantes sem levantar suspeitas, embora não fossemos tão pobres que, ouvindo nós falar das muitas propriedades que tinham, devêssemos sentir-nos frustrados só por possuirmo-las em menor número.

Recém-filiado no Partido Evolucionista, que com o Partido Democrático degenerou na União Sagrada para lutar ao lados dos ingleses, ao meu pai não faltariam motivos para ter-se mantido fiel à coroa. Era apaixonado por navios, como o falecido Rei D. Carlos e a minha avó paterna cozinhara no Paço Real ao tempo em que a Rainha D. Maria Pia, vinda de Itália e ainda não afeiçoada à nossa gastronomia, se contentava com um suculento prato de ovos mexidos que ela misturava com farinheira e um naco de presunto que enquanto foi viva chamou jamon, como fazem os espanhóis de Andorra na zona fronteiriça com França, onde a monarca ia amiúde comprar vestidos de cerimónia e sapatos de salto alto para encher os roupeiros do palácio.

Não era usual a um homem que dizia amar os patos como meu pai, ver disparar sobre eles. Mas acabava por explicar, do modo simples que fazia dele um homem raro como alguns dos espécimes das aves migratória que se entretinha a observar, que ficava a dever-se a desde tenra idade, acompanhar o pai nas caçadas, dando-lhe a arma de coronha de marfim com que, por ser quase da sua altura, achava que podia abater-se um elefante.

Não sei por que me convencera de que, passados tantos anos desde o dia em que o pai lha oferecera, era a mesma desses dias em que saíam de casa de manhã para regressar à noite, a arma com que me estava naquele fim-de-semana a ensinar a disparar aos patos, que voavam tranquilos a uma altura em que seria impossível atingi-los, nem que treinasse diariamente a pontaria há mais de um mês.

E talvez nem se importasse que a voar me levassem consigo para longe, antes de formar-se o primeiro contingente de militares portugueses que haveriam de embarcar para portos franceses. Quem sabe para um lugar ainda mais distante de casa do que terras gaulesas, de onde não se ouvisse o troar sombrio dos canhões, não chegassem notícias de conflitos, nem lhes entrasse pela casa adentro a notícia de que, a juntar aos milhões de vidas perdidas desde o início da guerra estava a do filho, que tombara ente o inimigo porque não soubera premir o gatilho de uma arma como a sua só porque ninguém até àquele dia o ensinara a disparar.