A co-adopção de Sara: um direito perdido

Hoje vou falar-vos da Sara…

A Sara era uma menina de sete anos de idade, que perdera o pai antes mesmo de ter nascido, e foi criada pelas suas duas mães desde que conheceu a luz do dia…

Na verdade, a mãe biológica da Sara tinha feito uma escolha muito clara quando decidira ser mãe aos 38 anos, e também quando havia assumido a sua orientação sexual e partilhado a sua vida em comum, em casal, com uma outra mulher, que a acompanhou no final da sua gravidez, no parto e, claro está, na criação da Sara.

A Sara habituou-se desde sempre a “contar” com as suas duas mães, uma biológica e afectiva, e outra afectiva, e a ir vivendo a sua vida pacatamente, sem grandes sobressaltos.

Quando a Sara fez sete anos, viu finalmente as suas mães casarem legalmente, assumindo a sua união de quase oito anos, e fazendo com que a Sara sentisse que afinal vivia num país onde a sua família era tão “boa” e normal como tantas outras.

Esse país é o nosso: Portugal.

Este país que na sua história tem uns quantos feitos que orgulham uma grande parte dos seus habitantes, entre os quais me incluo, como ser um dos primeiros a abolir oficialmente a escravatura, ou ser um dos primeiros a abolir a pena de morte, por exemplo.

Este país onde a tolerância de tempos a tempos utlrapassa as tendências bárbaras, e onde o respeito pela diferença vai percorrendo um caminho, com sobressaltos é certo, mas lá o vai percorrendo…

Mas, voltemos à Sara…

Depois do casamento que oficializava a união das mães de Sara, passaram-se uns meses até que infelizmente a vida “pregou uma partida” à mãe biológica de Sara: A doença “apanhava-a de surpresa” mostrando-lhe a fragilidade imensa da vida humana…

Nesta fase a mãe biológica de Sara pensou pela primeira vez de uma forma mais séria e grave sobre a co-adopção. Informou-se tanto quanto podia de quais as verdadeiras hipóteses de proteger a sua filha biológica, em caso de morte, tentanto assegurar-se de que ela poderia continuar com a sua mãe afectiva, aliás conjuge da mãe biológica de Sara.

Nada havia a fazer…Em Portugal este direito aparentemente simples não vinha consagrado na Lei, e portanto em caso de morte da mãe biológica, à Sara ficaria reservado um destino incerto…

Isto preocupou imenso as mães de Sara, como qualquer pessoa poderá imaginar…

Passaram-se dois anos entretanto…Felizmente a doença que tinha “apanhado” de surpresa a família de Sara, tinha evoluído num sentido favorável. Parecia estar tudo bem, na verdade.

Enfrentavam no entanto, um pouco todos os dias, os olhares indiscretos de alguns, os preconceitos de outros, e por vezes até palavras menos agradáveis…

Infelizmente as pessoas por vezes falam demasiado da vida alheia, sentem-se no direito de julgar os outros e as suas opções de vida…acham até – imagine-se – que têm o direito de decidir as escolhas e orientações sexuais de cada um/uma, e ainda mais grave, decidir a vida das crianças que têm famílias menos convencionais, ou seja, famílias cujo casal não é heterossexual.

Felizmente existe um Estado de Direito, capaz de proteger os interesses destas famílias e destas crianças, sem que as mentalidades de uns ou de outros possam interferir neste direito…

Julgava eu…

Mas não.

A semana passada o governo de Passos Coelho decidiu levar a referendo a Lei da co-adopção por casais homossexuais, como se um direito de uma minoria que precisa na verdade de ser protegida nos seus direitos por isso mesmo, pudesse e devesse ser julgado por uma maioria, nem sempre bem informada, herdeira da ditadura do Salazar e das correntes castradoras do catolicismo mais conservador…

Num Estado de Direito, laico e justo, pareceria óbvio que esta Lei fosse aprovada no Parlamento, sem mais.

Não interessa minimamente se eu, ou o outro, concordamos ou não, se achamos bem ou mal, isso na verdade pouco, aliás nada importa.

O que importa é a proteção desta famílias e dos direitos essenciais destas pessoas, sobretudo as crianças que vivem nestas famílias.

Infelizmente este governo não pára de surpreender pela negativa, e dá mais um “tiro no pé”…o pior de tudo é que o “tiro” atinge-nos a todos…a todos os que acreditamos na Casa da Democracia, nos Direitos Humanos, nos Direitos das crianças…atinge de forma mais pessoal estes casais, estas crianças…

A mãe biológica da Sara, entretanto, teve um acidente fatal.

Quando nada o fazia esperar, depois de uma luta imensa contra a doença, a morte apanhou-a desprevenida…a ela e à sua família.

A Sara viu-se subitamente “retirada” à sua família, uma vez que entre projectos de Lei rejeitados e “circos” no Parlamento, a Lei da co-adopção, a única que poderia ter permitido à Sara a continuidade no seu Lar e família, ajudando-a a ultrapassar e a superar a perda da mãe biológica, não foi aprovada.

A Sara, agora com 10 anos, foi para uma Instituição. Não havia familiares legais próximos.

A outra mãe de Sara, a afectiva, continua a lutar por poder ficar com a Sara, claro…mas a Lei não permite.

Entre o “o circo” em que transformaram o nosso Parlamento na passada semana, truques eleitoralistas que agradam a determinados sectores mais conservadores da nossa sociedade, existem vidas em jogo.

Vidas de famílias, de crianças, que necessitam de proteção legal; que precisam que o Estado de Direito as proteja e lhes reconheça o direito a estar na sua família, com igualdade de direitos.

Estas famílias enfrentam o preconceito dos outros todos os dias…e infelizmente viram a semana passada o Estado negar-lhes o que é legitimamente seu – a sua família.

Felizmente a história de Sara é ficção. Qualquer semelhança com alguma situação real é apenas uma coincidência, porque fui eu que a “criei” agora mesmo.

Criei a história de Sara porque foi a forma que encontrei de expressar a minha profunda empatia com esta causa e com este direito…

Não interessa nada a minha opinião sobre esta matéria, nem sequer me ocorre que tenha o direito de opinar sobre a vida alheia dessa maneira. Empatia é colocar-me apenas no lugar do outro, nada para além disto, nada que fique aquém disto – essa é a razão da história de Sara. Uma situação que no limite, merece a maior urgência e celeridade em legalizar o direito destas famílias, desta crianças.

Quando se tratam de direitos pouco importa a opinião de cada um, nem importa a opinião de uma maioria. Quando se tratam de direitos essenciais existe um Estado e um Parlamento que os deve reconhecer e zelar para que eles prevaleçam acima de qualquer preconceito, estigma ou grupo de interesse.

Hoje a minha reflexão passou por aqui…

Pensem nisto, com isenção.

 

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Crónica de Lúcia Reixa Silva
De Alpha a Omega