Como os Passarinhos – Transportes Públicos

Era uma daquelas manhãs de céu muito azul em que o efeito pecaminoso do acentuado arrefecimento nocturno ainda está a fazer das suas. Os pombos voavam como dardos por cima dos telhados antigos do Conde Barão, com as asas a ferirem a luz nascente em sombras rápidas que cortavam o ar num rufo breve e desapareciam logo a seguir. Andavam gatos nos parapeitos das janelas emparedadas a tijolo do prédio abandonado mesmo à frente da paragem. Batíamos todos com os pés contra o chão, compassadamente, resignadamente, nenhum dos transportes chega mais depressa por nos enervarmos com o frio. Há quem esteja de luvas. Há quem já tenha enfiado os auriculares e não esteja para ninguém. Há dois reformados encostados à parede que ainda não conseguiram deixar de sentir necessidade de falar só mais um bocadinho do ordenado do Catroga, enquanto vão fumando e vão esfregando as mãos depois de lhes soprarem para dentro. Há quem se tenha refugiado dentro da pastelaria e esteja a deitar abaixo os pasteis de nata acabados de chegar enquanto espreita a espaços para a porta. As nossas respirações condensam-se em nuvens pequeninas à medida que nos sai o ar das narinas.

Finalmente, os carris do eléctrico estremecem e o 25 para a Alfândega aparece lá ao fundo.

Estes dois vieram sentar-se mesmo à minha frente, e não cheguei a saber o nome da mãe mas ficava-se facilmente de posse da informação de que o filho se chamava Bruno, porque ela gastava-lhe o nome com imenso amor e carinho. Eram adoráveis. Ela tinha o cabelo longo todo cinzento, apanhado num rabo de cavalo muito liso, lindamente japonês na sua perfeição simétrica de linhas simples e claras. Além disso, tinha uns olhos quase transparentes que devem ter despedaçado muito coração no seu devido tempo, escondidos atrás de uns óculos de aros finos que lhe escorregavam docemente pelo nariz quase recto. Ele deve ter saído ao pai, porque era um morenaço de olho preto e cabelo ondulado, forte e brilhante, a roçar a gola do blusão almofadado azul. Andava aí pelos seus trinta anos. Evidentemente, adoravam-se.

Quando comecei a ouvir-lhes a conversa com mais intenção, descobri logo que este Bruno era um tal barra de computadores que deve ganhara vida a consertá-los e configurá-los e programá-los, se não mesmo a montá-los desde a primeira peça. Percebia-se que o portátil da mãe andava a fazer imensas coisas mal, e melhor ainda se percebia que a mãe era tal qual que nem eu – até explicar cada problema por ordem e com sentido lhe era difícil. O Bruno só se ria. Depois, às vezes, chegava próximo da exasperação, mas nunca lá entrava. Ó Mãe. Um quadrado que pisca? Um barulho que parece um gatinho? O seu Explorer está marado, mas está marado como – aliás, para que é que ainda usa o Explorer, eu não lhe instalei já o Firefox, não estou farto de dizer que Linux é Linux, Mãe, Linux é outra qualidade? Mas quantas janelas é que a Mãe abre de cada vez? Quantas? Não vê que isso faz jammar tudo, Mãe, andar a trabalhar com dez janelas abertas e deixar o portátil ligado assim durante horas, mesmo quando não está a usá-lo? Não vê que um portátil não é um desktop, Mãe, um portátil aquece. Eu às vezes chego lá e o se está a ferver. Ainda por cima é teimosa e não me deixa tirar de lá o Windows Vista só porque tem preguiça de salvar os seus documentos todos para aquelas pens O Bruno tinha um plano.

A mãe ia ao painel dos comandos e clicava não sei onde. Depois clicava no qualquer coisa. Havia de encontrar lá um programa que se chamava não sei quê. Só isso. Depois, não tinha nada que saber: bastava fazer o download desse programa para o portátil e guardá-lo no Ambiente de Trabalho. Havia de lhe aparecer um código. Ela que lho comunicasse. Aquele prodígio ia permitir ao Bruno aceder ao computador da mãe a partir do seu, e consertar aquilo tudo calmamente sem ter sequer que sair do quarto. Ou da cama, mesmo. Se fosse caso disso.

A mãe estava quase a chorar.

Filho, eu não consigo fazer nada disso. Vai correr tudo mal. Não vou encontrar o programa. Não sei fazer downloads. Vou espatifar o portátil. Vai lá buscá-lo à loja e faz tu isso.

Mas, Mãe, respondeu o Bruno, e agarrou-lhe no braço. Oiça.

Apertou-lhe o braço com mais força.

A Mãe tem que fazer como os passarinhos: abrir as asinhas e começar a voar.


Crónica de Clara Pinto Correia
Transportes Públicos