A criança que tinha aversão ao dia mundial da criança

Para o entendimento de qualquer criança, o dia primeiro de junho de cada ano, representa uma espécie de primárias das presidenciais americanas, em que ela fica já com uma ideia dos presentes que vai receber no Natal.

Trata-se na realidade do Dia Mundial da Criança, instituído pelas nações unidas e que ocorre sempre por esta altura e é útil sobretudo para os pais. Decorridos os seis primeiros meses do ano, dá para os encarregados de educação dos menores terem uma ideia de como os filhos se vão portar dali até dezembro e assim perspetivarem um orçamento do valor que irão gastar nesse período, tanto maior quanto mais eles se portarem de acordo com a sua própria conveniência.

Há um ano, os meus pais bem tentaram convencer-me do contrário, mas achei que não foi por me terem oferecido uma bola de futebol, que de repente confiaram em que eu tivesse tanto talento que pudesse vir a fazer desse jogo uma profissão. Foi um ato de rejeição por ter considerado que deixara de haver uma relação direta entre o que fazíamos e o que recebíamos. Isto, depois de ter visto que ao Jonathan, que era malcomportado nas aulas e ofendia as meninas com palavrões, os dele ofertaram uma bicicleta. Prateada, com o tamanho da roda aro vinte e seis e o selim rijo como cornos. Tinha o guiador rebaixado, igual aos das bicicletas dos ciclistas profissionais e, debruçado nele com o corpo inclinado para a frente, gostava de passar por nós sprintando a alta velocidade, mostrando o seu novo brinquedo a que não faltavam dois carretos de pôr mudanças para, no caso de um se avariar, não ter como não encaixar a certa e assim arranjar uma desculpa para desistir nas dificuldades iniciais da primeira montanha de quinta categoria que lhe aparecesse pela frente.

À Berta, a mãe dela deu imensos vestidos para vestir de princesa a sua Barbie que devia ser pobre, pois ouvi-a queixar-se de não ter, na casinha dela de madeira, onde só havia dois quartos, uma sala e uma cozinha, roupeiros em número suficiente para conseguir arrumá-los a todos.

De resto, ambos eram os meus melhores amigos e nessa condição estava disposto a sacrificar-se por eles. Pelo Jonathan, estaria na firme disposição de deixar-se vencer numa prova velocipédica em que terminaria em último lugar para demonstrar-lhe que havia uma grande distância a separá-los.

Pela amiga, acharia piada a que ela vestisse todas as suas bonecas e peluches com as roupas que sobravam da Barbie, só para não ouvi-la queixar-se à mãe de ter comprado tantas em vão.

Existe desde que me lembro, esta tradição na minha família de oferecer prendas para comemorar o Dia Mundial da Criança. Todavia, só me lembro das que recebi a partir de ter feito onze anos, há dois, portanto.

Em bebé, davam-me babetes e baby-grows com que surjo vestido em inúmeras ocasiões que ficaram fotografadas para a posteridade. Dos seis aos dez, brindaram-me com jogos e puzzles dos quais já não guardo todas as peças para poder montá-los agora e mostrar, a quem se atreva a duvidar, que um dia fui capaz de fazê-lo. E só recentemente é que fui agraciado com um telemóvel, por onde não recebo chamadas a não ser da minha mãe, para comprovar que ainda o uso e não foi mais um dos presentes que me deu e em menos de um mês eu pus de parte.

Vários dos meus amigos são da opinião de que nada se perdia se houvesse mais destes dias por ano. Porém, eu acho o contrário. A mim, basta-me um dia, nem que fosse de quatro em quatro anos, para saber se os meus pais me estimam tanto como eu acho que mereço. Não vá um dia suceder que, entusiasmada com as novas tecnologias, a minha mãe resolva comprar-me um novo telemóvel, mas numa versão mais avançada, apetrechado com hi-fi e uma câmara incorporada que lhe permita saber, sempre que me contactar, onde e na companhia de quem é que eu estou.

Hoje, apetece-me dar um basta e dizer que quero crescer rapidamente para tornar-me adulto o quanto antes, assumindo todas as consequências desta resolução, que seria a mais séria de todas as que tomei na vida, não fosse aquela em que desejei voltar a ser bebé. Quando? No dia em que tive saudades de andar ao colo de toda a gente para todo o lado e ainda levava, de vez em quando, uns beijinho da Carla, que se fartou de ser minha namorada e brincar comigo no jardim-de-infância e hoje em dia não quer saber de mim para nada.