CRIS. Assim, em maiúsculas – João Nogueira

Gosto de ti. Reticências.

Vives em mim. Em todos os meus andares. Da cave ao sótão do meu eu, lá estás tu e a tua fila indiana de dentes brancos. Todos certinhos.Todos direitinhos.

Estou longe de ti, só hoje, mas sinto necessidade de te escrever. Assim, com esta letra à primária, bem redondinha.  É mais gorda que o caracter do teclado, tem a anca mais larga, mas tem melhor coração. E tu gostas mais.

Escolheste-me. Da multidão de rapazes de nariz pequenino e de olhos verde-azeitona, tu, sua morcona, lançaste o dedo indicador na minha direcção. Olhei para o lado direito. Depois para o esquerdo. Olhei para cima. A seguir para baixo. Olhei para ti, com o indicador a apontar para mim. A medo, como num filme mudo, disse: EU?

Salvaste-me. A única coisa que eu tinha de original era ter lateralidade cruzada. Escrevia com a direita e chutava com o esquerdo. Achaste piada. Não discuto gostos. Grato, lateralidade cruzada.

Lembro-me de ti na escola.

Lembro-me do milésimo de segundo em que a minha vida ficou circunscrita a ti. Rasgaste em trinta e sete pedacinhos o exame de Filosofia, dois minutos depois de começar. Levantaste-te, juntaste os pedacinhos, agrafaste-os e deste-os, a sorrir, ao professor. Sempre a sorrir, muito educada, mandaste o senhor abaixo de Braga.  Antes de saíres, e ainda a sorrir, disseste-lhe para ir perguntar o que é o amor numa perspectiva epistemológica, à mãezinha dele. Um a um, levantámo-nos e batemos-te palmas.

O amor não se pergunta. Ele fala por ele. Mas sem cordas vocais.  O amor está nos olhos, nunca nas palavras. Elas só atrapalham, disseste-me.

Disse-te que não.

Disseste-me que sim.

-E não…

– E sim…

-Desculpa, Cris, tu não percebes patavina de amor. Zero! Aliás, percebes tanto de amor como eu percebo de columbofilia islandesa.

(Riste-te.)

– Cris, se o amor está só nos olhos, porque é que  tremo sempre que estou ao pé de ti? Que eu saiba, não tremo com a íris nem com a córnea. E porque é que não consigo parar com este tique na sobrancelha? Dá-lhe liberdade, deixa-o vir por aí abaixo. Dá-lhe asas. Não lhe construas uma jaula nos olhos.

(Coraste.)

Cris, sabes uma coisa?

( a olhar para o chão)

– Sei muitas.

O olhar de que falas pode ser um não olhar?

(Ris, envergonhada.Continuas a olhar para o chão)

João, vamos comer pão com geleia?

Esse diálogo, que por um triz não foi monólogo, marcou a tua vida. Não a minha, porque eu já sabia de que farinha eras feita.

Sabes, amor, aos setenta a vida não é como aos vinte. Sim, é pior. Sem eufemismos. Ninguém gosta de envelhecer. A vida é um estupor.  Um coito interrompido. Faz cara feia a orgasmos de gritos de boca aberta e ao suor que cai em cataratas do Niagara, por nós abaixo. A vida mete os dedos na boca quando te vê dormir, agarrada a mim. Seja na cama. Seja à beira da lareira.

A vida é virgem. Ninguém lhe pega. Há-de morrer assim, com o hímen intacto. Bem feito. Ela deu-me-te. Ela vai-me tirar-te.

Meu amor, eles sabem lá! Se soubessem, nunca diriam que primeiro vem a paixão, que dizem ser efémera –  os lorpas –  e depois vem o amor. Uma coisa tranquila, para aquecer os pés. Uma coisa porreira para as noites de Inverno. O Amor, para eles, pode ser substituido por botijas e carapins, vê lá tu!

Hoje, velhinhos, digo-te, muito baixinho: excitas-me tanto como no primeiro dia. Ainda mais baixinho, a sussurrar no teu ouvido encorrilhado: a tua pernoca  septuagenária  continua a adiar aquilo que ambos sabemos que era suposto já ter vindo há muito. Agora em mímica, porque o que vou dizer é quase quase ordinário: paixão, meu grande amor, é termos setenta anos e “darmos duas”. Pronto, já disse. Desculpa, desculpa, desculpa. Não volta a acontecer. Refiro-me, obviamente, à linguagem!

Cristãos, islâmicos, brancos, pretos, feios, bonitos, ciganos, beatas, prostitutas, freiras, ladrões, pais de santo, um apelo. Acreditem em Cristo, em Isaías, em Abraão ou em Maomé.  Mas acreditem mais no amor. Eu quero lá saber que apregoem Deus , Santo Eugénio, ou que escrevam teorias sobre o caroço de Adão. Apregoem mas é o Amor. Rezem, orem, chorem, peregrinem, mas Deus é uma coisa. Sim, Deus é uma coisa, lamento.

Sou e tu, Cris. Quando estou com gripe. Dás-me beijinhos e deitas-te ao meu lado. Dizes que se eu estou doente, tu também passas a estar.  Também dizes que quando eu estou contente, tu também passas a  estar. É justo. É Deus.

Deus não tem nada que saber. É  isto. Uma coisa que não se vê.  É um arrepio.  Um vento que passa. Muito frio. Que dá vontade de te abraçar com a força de mil homens.

Cris, perdão. Estou amargo. Estou azedo. Não tenho força. Não é justo. A vida é fascista. Tenho medo de morrer. Tenho medo que tu morras. Como é que vai ser quando morreres e eu não estiver lá. Ou o contrário. Chamas por mim? Chama. Que eu vou. Logo.

De xis-acto em punho, rasguei o meu peito com o teu nome. Ejaculei sangue atrás de sangue. Sangue preto, não vermelho. Não o estanquei. Jamais o estancaria, Cris.

Do meu peito já ninguém te tira.

Nem a vida.

Nem a morte.

Um amo-te sem palavras. Só olhos nos olhos. E  pernas a tremer. E sobrancelhas a sobrancelhar.

Até amanhã.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

Visite o blog do autor: aqui