Crónica de um bom Pai

Mil novecentos e sessenta. Ano bissexto. Trezentos e sessenta e seis dias. Cinquenta e duas semanas. Sexta e sábado, respetivamente. O início. E o fim. Facto evidente. O ano mundial dos asilados. O ano de Ayrton Senna. O ano de Renato Russo, vocalista e instituidor da banda de rock Legião Urbana.

Estátuas e cofres/ E paredes pintadas/ Ninguém sabe o que aconteceu/ Ela se jogou da janela do quinto andar/ Nada é fácil de entender.

O ano de Jorge Quiroga. E do meu pai. Fernando António Marques.

Os anos não importam. Não valem absolutamente nada quando o amor é imenso. Do tamanho dos olhos que ostenta. Os dele. Carregados de pasmo. Suportados por tudo aquilo que construiu. Ao longo dos tempos. E da vida. Em prol da família que fundou. Com suor. Com reverência. E ainda somos cinco. Ao todo. Bem apessoados. E cheios de orgulho. Como o meu corpo treme de tanto admirá-lo. Pelo homem que voa através do respeito. Do caráter trabalhado a pulso.

O meu pai é um miúdo erudito. Conhece-me como ninguém. Somos a palma e a mão. E torna-se extremamente difícil venerar os que vivem ao nosso lado. Mas possível. É obrigatório.

Lembro-me de tantas coisas boas. E outras tantas más. De quando vivíamos num curral abandonado. Sem luz. Sem água. Mas sobrevivemos. Chorámos o bastante. Mas recuperámos. E as histórias infantis voltaram a ser as mesmas. Contadas com o coração. Vividas com o olhar. E eu quase a completar sete anos.

O meu pai nunca censurou as minhas escolhas. Quer pessoais, quer profissionais. O facto de eu ser homossexual não quebrou os laços. Pelo contrário. Fortaleceu-nos. Contra tudo e contra todos. Porque é assim que funciona o amor de um pai. Não julga. Não reprime. Apoia o essencial. Tornou-se um herói de referência. Para mim. Para todos. Principalmente para a minha mãe. A flor maior do seu jardim. A eterna tulipa vermelha. Diz ele. De coração rasgado, a mostrar ao mundo o amor inalterável. O amor perfeito. O amor que representa para quem as oferece uma real declaração de afeto. Uma flor luxuosa. E todos os dias são um só.

Este texto é para o meu pai. Que trabalha seis dias por semana. Que pensa em mim todos os dias. Que espera ver-me sempre bem. Porque é um homem bom. Para ti, meu pai. Que ainda estás entre nós. Por ti entorno todo o meu respeito. O meu pai. Que calça sapatos de verniz. E veste camisas de flanela aos quadradinhos. E tem mais de cinquenta anos.

Trabalhar com honradez. Tocar as pessoas com extrema dedicação. Viver com franqueza. A imponente ciência ontológica. Como o Pessoa.

Filho que sou. Tolerante. Não sentencio. Sou adepto dos atos. Preparo sempre o melhor. Atuo como todas as pessoas. Não prejudico ninguém. Afinal, não sei o que é a vida, apenas que é um grande e poderoso pormenor inexplicável. O Pessoa, outra vez a inundar-me de inspiração.

O meu pai. Que ouve Tony Carreira nos tempos livres. O meu pai. Que nunca precisou de emigrar. Como o Tordo. Mas o meu pai não é músico. É jardineiro. E eu não escrevo assim tão bem como o Tordo mais novo. Fica o testemunho. Este.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
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