Crónica de segunda-feira de cinzas

Saí da Avenida Paulista com a sensação de alívio que devem ter os moradores do Rio de Janeiro que não gostam de Carnaval e na altura mais festiva do ano abandonam a cidade, viajando em direção ao interior do Estado em busca de sossego.

Largo aqui o carro e vou a pé para casa, foi o que pensei, mas moro longe ainda, no bairro do Morumbi, de onde para ir ao estádio Cícero de Toledo ver jogar o Timão nas deslocações ao terreno do S. Paulo FC, me bastaria surfar no mar de gente que se acumula nas imediações e a pé ou de carro entope todas as artérias que lá vão dar, como deve fazer o colesterol a um coração frágil como o meu, que ameaça sofrer um enfarte de cada vez que a equipa sofre uma derrota ou simplesmente empata no campeonato nacional. Mas só sou paulista desde oitenta e cinco. Até lá vivíamos no interior do Paraná e torcia pelo clube da minha terra.

Viro à esquerda, perto do Museu de Arte de S. Paulo e na Alameda Casa Branca há uma banca de flores onde podem comprar uma coroa para o meu enterro, se não chegar depressa a casa e tomar um duche a escaldar para me livrar dos confetis que apanhei de uma varanda à saída do escritório, para onde gritava um sujeito de terno e gravata que tinha apanhado com um ovo em cheio na cabeça.

A minha namorada costuma dizer que pareço português do que brasileiro, por não gostar de festejar o Carnaval, de que só aprecio a bunda das moças que saem à rua seminuas quando se baixam sem dobrar os joelhos para apanhar qualquer coisa que lhes cai ao chão.

Na Avenida Cidade Jardim, faço o carro avançar mais depressa para aproveitar um semáforo verde, quando na minha frente um carro abranda e buzina para cumprimentar um grupo de foliões que segue a pé. Decidem atravessar a rua a dançar, no meio de onde se destaca um homem que vem enfeitado de plumas nas pernas, mas com o tronco a descoberto e suado, em quem só erradamente poderia passar pela cabeça que eu quisesse enfiar comigo debaixo da água caliente para pedir educadamente que me esfregasse as costas.

Há dias, a minha mãe falava em surdina, da eventualidade de meu irmão menor de idade e eu irmos com ela passar uma semana na casa de campo da minha avó. Lá em casa, caíra em desuso o hábito de ela tirar férias com o meu pai, que por conta das caipirinhas que se entretinha a beber com os amigos quando saía do trabalho, àquela hora já devia estar perdido de bêbedo nalgum casino clandestino, apostando a mesada do filho em como com um par de damas podia derrotar um full de ases e ganhar o equivalente à minha mãe poder-se reformar mais cedo, sem que, para compensar a perda do rendimento dela, tivesse de passar a trabalhar horas extraordinárias.

Sigo numa transversal à Avenida dos Bandeirantes e congratulo-me por não ter vindo antes pela Avenida Rio Branco para desaguar na Rua da Consolação onde costuma haver mais trânsito, mas em contrapartida, menos pessoas a ziguezaguearem no passeio para se desviarem dos carros que estão mal estacionados.

Vejo um polícia com ar de mastodonte a dar passagem a um veículo prioritário, em que teria batido de frente com enorme estardalhaço, se continuasse distraído à procura nele de vestígios de algum animal mais simpático para compensar.

Por instinto, guinei a direção e o carro descreveu um arco, que me apressei a desfazer para não embater noutro que ele tinha entretanto mandado parar. E só de seguida, retomei o percurso que se revelara sinuoso mas que eu tinha idealizado cumprir em linha reta para chegar cedo a casa, afastando-me do epicentro do Carnaval que ficava para trás, para os lados da Consolação.

Fustigado pelo cansaço, temia receber uma chamada do escritório que me fizesse voltar atrás para tratar de algum assunto pendente. Era adjunto há dois anos do diretor financeiro que saíra colado a mim, numa firma que importava brinquedos do Paraguai antes de revendê-los no mercado nacional, com uma nova etiqueta a dizer que eram legitimamente fabricados no Brasil.

Como contava estar ausente dois dias, tivera o cuidado de deixar a papelada arrumada nas gavetas da secretária, sem nada desarrumado como gostaria de encontrá-la sempre e não apenas nos dias em que a empregada da limpeza vem com vontade de trabalhar, só porque na véspera não caiu na borga com as amigas nem se foi deitar à hora a que devia estar a levantar-se.

Meu cinzeiro apareceu quebrado no outro dia, em que a repreendi por me andar a fumar às escondidas um maço que guardo na gaveta dos cheques para quando ando sob stresse, mas ela parece nem ligar e ainda por cima com a complacência de meu pai, que acha perfeitamente natural que não se saiba fazer respeitar pelos outros da sua espécie, um homem da minha idade que não só não gosta de samba, como não percebe que samba de uma nota não é senão o nome de um que compôs Tom Jobim e não a forma simplista como todos são feitos.

Caí na asneira de ligar o autorrádio do carro, de cujas colunas a música que saía só seria desadequada à época que vivíamos se estivéssemos no Natal ou na Páscoa ou atravessássemos a Semana Santa. Ouvia-se a bateria de uma escola de samba e em fundo o som das cuícas. Troquei de posto o número de vezes que naquele momento seria necessário beliscarem-me para tomar consciência de que não estava a viver um pesadelo.

Trocaria de bom grado a viagem planeada para fazer a Paris no verão, onde não fazia questão de ir ao Teatro da Ópera assistir a um concerto de música clássica, só pela sensação de lá estar a apreciar boa música num ambiente romântico nas margens do Sena.

De repente, alguém ligou para lá e invocou o ano do centenário do samba e depois ao telefone um ouvinte pedia para passarem uma faixa de um disco que eu não sei com exatidão se muita gente conhece.

Não é por ser antigo e eu gostar. Mas bem sei que há cada vez menos pessoas a pensarem como eu, ou seja, a detestarem sambão e o que lhes está associado. Só que mesmo essas não se aborrecem por causa do Carnaval. Claro, desde que possam ficar em casa na maior e não tenham à espera um patrão chato como o meu, que nem na véspera do feriado nacional favorito dos brasileiros me deixou fazer ponte e obrigou a ter de vir trabalhar.

FIM