Crónicas de bordo do Séc. XVI, por Abílio de Loures

Relato das expedições vividas pelo navegador Abílio de Loures, a bordo de um veleiro.

Na manhã tranquila de novembro de 1580, Abílio de Loures congratula-se por estar salvo. Avistando à distância dumas léguas um palmo de terra, dirige-se para lá, forçando a pequena embarcação a desviar-se das correntes que poderiam afastá-lo. Uma terra a que não quis pôr um nome, chamando sua, sem ter a certeza de que lá havia cavalos e gado em número suficiente para ser considerado um proprietário rico.

Inspirado nos relatos de navegadores como Pêro da Covilhã, Diogo de Silves e João de Santarém, todos eles com descobertas importantes no século XV, Abílio de Loures decidiu ele próprio tornar-se explorador e partir numa viagem de circum-navegação ao planeta, capaz de levá-lo a lugares surpreendentes, aonde nunca nenhum antecessor se atrevera a ir, nem sequer com uma tripulação de cem homens a bordo de nau.

Zarpou da zona ribeirinha do Cais das Colunas, com vista para o paço real, numa sexta-feira 13 de boa memória para os lisboetas, em que chovia, pondo fim a uma angustiante seca que se prolongava há mais de um ano. A despedir-se de si, sem pudor do estado em que se encontrava, havia uma jovem namorada grávida de quatro meses, e a esposa legítima, de quem seria mais legítimo esperar a vinda dum primeiro rebento que desse continuidade ao bom nome da família.

Com o sol a dar-lhe na cara, sentia o vento soprar-lhe nas costas de feição, pelo que rapidamente logrou afastar-se das margens, o bastante para que ao cabo de uma hora já não distinguisse com clareza, se era o mosteiro da Ordem dos Jerónimos, o outrora imponente edifício de calcário que via com recurso ao monóculo.

Às primeiras horas, fizeram-lhe companhia as primeiras gaivotas a acordar, mas dali a nada já só se lembrava delas a afastarem-se em bando, talvez agastadas de esperar em vão, que brotasse alguma espécie de peixe, da linha na cana com ele para se entreter se pusera a pescar.

Viajava numa pequena embarcação, de apenas seis metros de comprimento por quatro de largura, de casco fino mas aparentemente tão robusto como uma canoa talhada no tronco duma peroba-rosa, que era uma árvore muito famosa no Brasil, de tronco espesso mais resistente às térmitas do que a madeira das árvores de menor qualidade.

Manobrava o leme com perícia e possuía conhecimentos básicos de navegação que talvez lhe valessem chegar em poucos dias à Madeira e a partir de lá estudaria como alcançar as Canárias. Estava confiante, porque aprendera-os com navegadores experientes e destes nunca ouvira ninguém queixar-se de que, querendo um dia ir buscar especiarias à Índia, tivessem por engano ido descambar no Brasil.

Para se orientar de dia, rumava a sul orientando-se pela posição do sol no céu, que ia variando, embora ele só perdesse o ponto de referência a Norte, se calculasse que, nascendo a oriente, fosse possível o sol deslocar-se em contramão. De noite, media a altura dos astros com recurso a um astrolábio, apontava à estrela polar com a ajuda dum quadrante, contava as estrelas e, a despeito de não saber o nome das constelações, seguia-lhes o rasto, anotando minuciosamente as mudanças que ocorriam, como se quisesse descartar para a posteridade, poderem atribuir-lhe a culpa de vir a desorientar-se no caminho.

Para fazer face à fome, num pequeno porão, escondia em baús de pinho um grande sortido de biscoitos endurecidos e carne seca, que mastigava constrangido, por saber que deixando de comer uma, passando à outra, a dificuldade de trincar era a mesma. Levava água em abundância e dois tonéis de vinho com que saciava a sede, quando se punha a pensar nas semanas de espera até encontrar terra e prontamente concluía que tinha de poupar na água.

Tudo isto tornava o pequeno veleiro num espaço apertado aonde mal cabia o mastro de pequeno porte ao centro, de vela triangular, que ora desfraldava, ora encolhia quando pressentia que vinha aí tempestade.

Um dia, tinha Abílio de Loures acabado de avaliar a impetuosidade do vento, quando um véu de neblina cobriu o convés, ocultando a aproximação intempestiva das nuvens. Nessa altura, viu-se só. Prevendo a estranha ameaça, um bando de aves tinha debandado em busca de uma aberta aonde à chuva, em sinal de tréguas, tivesse sucedido o sol.

Estava totalmente encharcado quando correu a ir buscar um balde com que pudesse expulsar da embarcação a água que ameaçava submergi-lo. O vento impiedoso, fustigava-lhe o peito e não fosse estar encharcado, secar-lhe-ia o suor do esforço de tanto correr dum lado para o outro tentando salvar a vida. Demorou mais de duas horas numa luta incessante contra um tal agravamento do estado do tempo, que seria impossível, mesmo pelos mais pessimistas, prever com os meios disponíveis na época.

Passou mais de uma semana de circum-navegação em torno de si mesmo, para Abílio de Loures convencer-se de que não era suposto viajar à deriva quando zarpou de Lisboa. Seguiu-se um período de algum desnorte e só mais tarde percebeu que não era sul à direita do lado do sol nascente, pelo que não podia ser norte a situar-se no lado oposto. Logicamente, chegaria mais longe se confiasse na posição das estrelas e deixasse de usar o Quadrante para tentar medir a intensidade do sol.

Devido à perda de provisões, receou não ter suficiente água potável para beber, até poder repor o stock de vinho, e como escasseavam os restantes alimentos, tentou abstrair-se da ideia de comer, pondo de lado também a lembrança dolorosa de todas as vezes em que tentava, em vão, pescar lançando a cana ao mar.

Andava a lamuriar-se quando avistou o pedaço de terra do início da crónica, acreditando que estava a salvo. Aproveitando o vento favorável e com a ajuda duns remos, aproximou-se rapidamente, acreditando que poria cedo os pés no areal, muito a tempo de um passeio de reconhecimento e recolher paus e canas visando improvisar um abrigo para não tornar a dormir ao relento.

Não iria de imediato reclamar-lhe a posse, sem achar que mereceria a pena. No entanto, baptizá-la-ia com o seu nome e doá-la-ia ao rei, integrando-a no vasto império colonial português, já tão vasto como o número de razões que há para acreditar, que ninguém está verdadeiramente a salvo, enquanto não regressa a casa, ao consolo dos braços da mulher que ama.

FIM