“Cuidar até ao fim” – Reflexões e propostas em Cuidados paliativos e no SNS

Esta semana vou falar um pouco sobre uma reflexão que tenho vindo a fazer há vários anos sobre os cuidados paliativos, comprometendo-me numa futura crónica a analisar e reflectir também sobre uma outra realidade que são os cuidados continuados, e que também merece cuidadosa atenção.
Mas hoje vou apenas, de forma sucinta e acredito que com clareza, abordar os cuidados paliativos e aquilo que é a minha opinião sobre os mesmos e a lacuna grave que se faz sentir no nosso SNS a este nível…

Os designados cuidados paliativos fazem parte dos cuidados a prestar a doentes declaradamente em fase terminal (com expetativas de vida que podem variar bastante ainda assim…), doentes com doenças muito graves de prognóstico reservado (ou seja, que não deixam grande espaço para melhoras significativas e com provável desenlance menos positivo), ou doenças tidas pela comunidade científica como incuráveis, em fase avançada e progressiva.

1. – O que os Cuidados Paliativos não são, nem devem ser:
Note-se que um largo número de defensores da Eutanásia argumenta e classifica muitas vezes que os “cuidados paliativos” são uma forma progressiva de “eutanasiar” doentes em estado de forte sofrimento e dor física, por avanço incontrolável e progressivo da doença; deste ponto de vista, toma-se por cuidados paliativos uma forma de cuidar até à morte mas manipulando e programando a mesma, como se fossem “uma morte controlada, lenta e programada, desejavelmente sem dor”.

Da mesma forma, mas pelo contrário, há no mundo quem classifique os “cuidados paliativos” como uma forma de “prolongar a vida” até ao limite do tolerável, diria eu, por formas continuadas de tratamento e manutenção de um estado clínico “terrível”, mas que pelos “excessos curativos” não permite a morte do doente, que, se fora do âmbito destes cuidados, morreria inevitavelmente “mais cedo”, e com estes cuidados permanece a “definhar” supostamente sem sofrimento (o que raramente é real) muito mais tempo, de forma “anti-natural” diria eu…

A primeira perspetiva não pode ser verdadeiramente aceite, sem mais, porque não é esta a definição, nem deve ser, de cuidados paliativos, e eles não podem nem devem ser tidos como “formas lentas de eutanásia” à partida. Pode acontecer por diversos fatores que cuidados paliativos se transformem numa “eutanásia lenta”, por exemplo por uma qualquer sobredosagem de medicação em dado momento, porque o doente está demasiado fragilizado e não responde da forma esperada a um determinado medicamento, etc., mas não é esta a definição de Cuidados paliativos, nem o que os caracteriza, isso não é. Não é objetivo dos Cuidados paliativos encurtar a vida dos utentes ou adiantar a hora da morte; se tal suceder é por “erro”, não por objetivo.

Já a segunda perspetiva acerca de Cuidados paliativos é, do meu ponto de vista (e apenas por ele respondo), absolutamente errada, e, se assim fosse, seria uma forma do mais profundo sadismo…
Para mim, perpetuar por “excessos de tratamento” uma situação de profunda agonia e sofrimento, não aligeirada a partir de certo momento pela medicação, é sádica do ponto de vista moral…

Não é objetivo dos cuidados paliativos prolongar a vida de sofrimento até ao limite do inaceitável, ou pelo menos os cuidados paliativos bem prestados e de forma eficaz e competente não têm esta pretensão.
Posto isto, os cuidados paliativos não devem ter por objetivo encurtar ou prolongar a vida do doente, eles devem apaziguar a dor e o sofrimento tanto quanto possível até à data expetavel da morte do doente, que varia, naturalmente com a doença em si mesma e com o doente em si mesmo, mas não deve depender dos próprios cuidados.

O que não pode também acontecer é “deixar o doente à sua sorte”, por estar em estado de agonia, abandonando-o no leito enquanto entra nas derradeiras 72 horas do fim – a agonia – em que hemorragias, vómitos e dispneia, dentre outros sintomas, estão frequentemente presentes e o doente ainda que deva ter a paz necessária para morrer, ou por isso mesmo, não deve ser abandonado e acabar por ver a vida ceder a um engasgamento por exemplo, ou outra coisa absurda em contexto de cuidados paliativos na Agonia. A aflição do doente não pode, nem deve, ser negligenciada, porque se aproxima o fim da sua vida. Pelo contrário, o doente deve ser acompanhado e cuidado até ao último suspiro, sem qualquer negligência, sem nenhum abandono. O doente continua a precisar de ajuda ou limpeza se vomita…por exemplo…não há nenhuma necessidade de o deixar abandonado nesta situação, e isto apenas quem presenciou e viu estados de agonia compreende…

Tão sádico do ponto de vista moral é o excesso que prolonga a vida e a dor, como o défice ou a recusa de cuidados e medicação adequada para apaziguar a dor em circunstâncias de profunda agonia.

Também não é aceitável, do meu ponto de vista, que os cuidados paliativos sejam uma “eutanásia disfarçada”, se o são é porque falharam em competência e eficácia, é porque não foram prestados de forma correcta e adequada, ou não foram bem sucedidos os objetivos de apaziguar a dor e cuidar até ao fim.

A eutanásia é outra coisa, e deve ser correctamente compreendida e ajustada em contexto de doença terminal, seguramente, nos países onde ela é legalizada. Poderá ser integrada, ou não, em cuidados ao doente, em países que a legitimem ( e sobre esta matéria não me irei no momento pronunciar), mas o que não pode é ser “disfarçada” no contexto daquilo que caracteriza e daquilo que são os cuidados paliativos e a sua essência.

2.- O que são e devem ser os Cuidados paliativos:
Cuidar até ao fim, e “bem cuidar” nas fases terminais da doença – é o que define o que são os cuidados paliativos. Os cuidados paliativos na sua essência e naquilo que verdadeiramente os diferencia, são a a forma de prestação de cuidados e suporte até ao último suspiro, até ao momento da morte, sem que isto possa, muito menos deva, encurtar, ou pelo contrário prolongar, a vida, ou seja respeitando tanto quanto possível o curso natural e progressivo da doença, mas garantindo que a dor e o sofrimento são verdadeiramente atenuados e mesmo apaziguados.

Assim, os cuidados paliativos dizem respeito aos cuidados a serem prestados aos doentes em estado terminal, com doença grave e de desenlance fatal a curto prazo, de avanço inexorável e progressivo, incurável.

Estes cuidados, quando adequada e eficazmente aplicados, garantem ao doente, e aos seus familiares, o menor nível de dor e sofrimento, o acompanhamento até ao fim de vida em condições humanas e dignas, em que desejavelmente se aguarda a morte do doente no tempo expetavel e sensivelmente previsto, sem antecipação, sem prolongamento. O respeito pela vontade do doente é mantido de forma muito particular sempre que possível, e o objetivo que esta última etapa seja com o menor nível de dor possível.
Existem protocolos a serem respeitados na aplicação de cuidados paliativos, como por exemplo o Protocolo de Liverpool para Cuidados paliativos, utilizado em muitos hospitais ou centros especializados em oncologia.

O doente oncológico em fase terminal constitui a grande maioria da população que carece de cuidados paliativos de grande exigência física e psíquica, o que implica habitualmente uma equipa de apoio em hospital, unidades ou em casa, com grande sensibilidade e experiência nestes casos.
Existem muitos outros doentes, no entanto, que necessitam desta prestação de cuidados em fases finais de doença, e estas são doenças várias que agora não irei explicitar.

O que é certo é que existem mais situações que necessitam deste apoio, e ele é de vital importância para uma etapa terrível na existência do próprio e de quem o rodeia, que carece de enormes doses de humanismo e competência técnica, em simultâneo.

3. – O SNS e os Cuidados Paliativos em Portugal: Falhas e Propostas
O que parece falhar nos Cuidados Paliativos em Portugal ao nível do SNS, e que precisa de ser revisto é, em primeiro lugar a escassez de respostas no serviço público, em termos de número de camas ou de unidades específicas, para um número crescente de doentes em necessidade. Veja-se por exemplo na zona de Lisboa, em média no presente ano, a resposta para aceitar uma transferência de um utente, já internado num hospital de agudos, com indicação para cuidados paliativos, é de cerca de cinco a seis meses…Por vezes a situação dura apenas de três semanas a três meses, pela gravidade e avanço da doença que o conduziu até em alguns casos ao internamento hospitalar…estes “timings” tornam obviamente a resposta absurda e extemporânea, lamentavelmente.

Em segundo lugar, o apoio e suporte em cuidados paliativos na residência, mesmo que possível, é, em termos de apoio tendencialmente gratuito, quase impossível… Falha por diversos fatores, apesar dos esforços das equipas, e, nomeadamente porque não há capacidade de resposta; porque não dá resposta a um utente que esteja só na sua casa, por exemplo; porque há carência de meios, recursos humanos e materiais existentes para esta resposta.

Os cuidados acabam por ser prestados por entidades externas e privadas, para quem pode, por sinal muito caras na sua maioria, e inacessíveis a grande parte da população…O apoio domiciliário tido como “normal” das Misericórdias, Paróquias e outras Associações, além de ser pago (embora seja mais justo e adaptado aos rendimentos, normalmente), raramente pode dar resposta, isto porque a sua indicação e âmbito é outro que não o de cuidados paliativos, cooperando habitualmente com um familiar que assume o papel de cuidador nestes casos.

Existe um terceiro problema, e grave quanto a mim, o facto de se “esquecer” que nem sempre os doentes em fases terminais de doença “dão entrada” num centro especializado nestes cuidados, e ainda mais grave, alguns doentes dão “entrada” numa urgência por complicações da doença terminal em estado muito avançado, sem que sejam internados por ela em si mesma, mas por uma complicação da mesma. Exemplo disto é por exemplo um doente que é internado por fratura patológica óssea, de mestastase, ou por hemorragia gástrica, ou por hemorragia do aparelho urinário, ou outra qualquer situação do mesmo tipo, e que logicamente é atendido e internado num hospital de agudos, na Unidade respetiva, onde algumas vezes a equipa se vê confrontada com uma realidade de complicações sucessivas que evidenciam um processo demasiado avançado ou até um processo “fulminante”, que pouco tempo dá a uma resposta adequada, mas que carece e urge ser alvo de cuidados paliativos nesses dias, semanas ou escassos meses de vida…

As equipas nestas situações, pela falta de resposta em tempo útil não conseguem transferir o doente para Unidade de cuidados paliativos, e muitas vezes não têm técnicos e equipa preparada devidamente para prestação destes cuidados no hospital e unidade de agudos.

Isto acontece demasiadas vezes na realidade dos hospitais portugueses…As equipas são, quase sempre, de um esforço fantástico, de um trabalho de inter-ajuda entre Unidades, de louvar, e de uma preparação humana e técnica muito acima da média…No entanto falta o local/espaço adequado, os psicólogos – praticamente inexistentes – para apoiar doente e familiares, uma equipa que saiba exatamente como proceder, como comunicar, como atuar, e que seja experiente em cuidados paliativos e estados terminais, que domine e saiba qual a própria paliação da dor na dose certa e controlada, sem encurtar, por excesso de medicação, e sem prolongar, por excesso curativo, a vida que tem um determinado tempo previsto, não muito exato, mas previsto…

Propostas:
À semelhança do que já se faz num ou noutro Hospital do país, penso que as Unidades de cuidados paliativos deveriam estar sempre contempladas dentro dos hospitais de agudos de referência, independentemente da sua existência, e bem, fora dos mesmos. Isto é, todos os hospitais de referência de agudos deveriam contemplar um x número de camas para cuidados paliativos – ou num piso, ou mesmo, e até acho mais interessante, x camas em cada Unidade – onde as visitas fossem em horários diferenciados, e as regras mais flexiveis caso a caso; onde o psicólogo e o assistente social fossem mais presentes, e existisse uma equipa de cuidados paliativos que os integrasse juntamente com médicos, enfermeiros e assistentes operacionais com formação adequada.

Idealmente estas equipas circulariam pelo Hospital, para além do piso que integrassem, e dariam resposta a situações identificadas como necessitando de prestação de cuidados paliativos. A partir daí, durante o tempo necessário até que houvesse resposta de Unidades exteriores, os cuidados seriam prestados, e, em casos de maior duração, os doentes poderiam ser depois transferidos para o exterior, quer para Unidades específicas da Rede, quer para casa, em casos possíveis.Noutros a morte seria ali, certamente, mas devidamente acompanhada em atenuação da dor, dignidade, e humanismo.

Nos casos de maior duração no tempo, e com possibilidade de permanecerem nas suas casas, e com essa vontade, as Associações sem fins lucrativos poderiam talvez desempenhar um papel de colaboração com o SNS, e ao seu serviço e da população, não permitindo que um doente ficasse sem apoio específico por preferir estar em casa e não ter posses económicas suficientes para recorrer a uma rede privada de cuidados.

Muito mais ideias, claro, que não desenvolvo agora, mas que saliento existirem, para que os cuidados paliativos sejam prestados sempre. Para que ninguém morra sozinho e sem cuidados por ser pobre. Que nenhuma família fique sem apoio numa fase terrível e final da vida do doente.. Que o doente veja a sua dor apaziguada e os cuidados devidos prestados, quer seja rico, quer seja pobre, quer tenha uma família aos eu lado, quer seja só. Direitos iguais em vida, direitos iguais na morte.

O que urge é alargar esta Rede de cuidados dentro do SNS, e repensar e reinventar formas de expandir esta rede para o espaço geográfico dos hospitais de agudos, sem que isso diminua as Unidades externas, e alargar estes cuidados à componente residencial (em casa do doente se for essa a sua vontade), eventualmente através de protocolos com Associações sem fins lucrativos por exemplo.

Não tenho soluções mágicas, recursos do nada…partilho no entanto esta reflexão de que existem estas necessidades, que elas são reais em Portugal, que o sistema tem de ser repensado para ser melhorado, mais humano e com maior capacidade de resposta competente e em tempo útil.
Partilho alguns pontos de partida para novas respostas, para eventuais soluções…

Urge agir e melhorar. É preciso que não se critique levianamente, mas antes dar soluções para serem pensadas, melhoradas, discutidas e finalmente implementadas na justa medida em que forem de real utilidade ao doente.

Por hoje a minha reflexão passou por aqui…É uma dura realidade que precisa de ser pensada, creio, por toda a Humanidade…