Quando a culpa é sempre do relógio – Conto

Cinco para a seis e o sol começa a pôr-se junto à ténue linha de árvores que lhe tolda o horizonte. O laranja dança agradavelmente com o azul, neste dia gelado de inverno. A caneca, anteriormente fumegante, já não emite sinais de vida que, tal como a sua alma, apagou-se. Uma vez mais, foi vítima do relógio, aquele que profere que ele nunca tem tempo para si. O cobertor abraça-a da melhor forma que sabe, mas não da forma que ela quer. Sentada na varanda, ela foca o nada, mas a sua cabeça é invadida pelo tudo.

Recorda, quando se conheceram, o quão presente ele era, o quão gostava de estar consigo, as surpresas, os sorrisos, os beijos, as palavras ditas e não ditas. Todo e qualquer pormenor era delicioso. Mas, aos poucos, o relógio colocou-se entre eles. Ou era o trabalho, amigos, doenças de familiares, misteriosos assuntos pendentes… Tudo era motivo. E ela, desculpa após desculpa, dizia que não fazia mal e aguentou sempre. Mas hoje… Hoje dói demais. Hoje a sua alma não é mais que um buraco, cavado ponteiro atrás de ponteiro, mas agora bateu no fundo. Não há mais chão.

Hoje é o dia. O dia de seguir em frente, no entanto, parece-lhe um dia como qualquer outro, onde vai ficar à espera que ele mande uma mensagem, telefone ou apareça mais logo por sua casa. A sua cabeça sabe o caminho, sabe que ela deve ser a prioridade da sua vida, mas o seu coração continua cravado à sua dependência. Mesmo sabendo que o seu amor-próprio bateu no chão, ela espera.

O silêncio parece mais silencioso que o habitual e as lágrimas começam a correr-lhe pelo rosto. É hoje. É hoje que ela vai deixar de ser controlada pelo relógio. É hoje que ela se vai fazer prioridade, não o relógio. Porque a vida não é sobre ter tempo, é sobre fazer tempo para o que realmente importa.

É hoje.