Da abstenção como ausência de contributo

A abstenção, previsivelmente, aumentou nestas últimas eleições. Existem diversas leituras possíveis. Neste post opto por uma, que se prende com a justificação dada pelos abstencionistas para a sua conduta, e para a forma como consideram estar a exercer um direito. A esse respeito, há dois planos que devem ser abordados: o plano ideal e plano material.

No plano ideal teríamos representantes políticos eleitos com o tal sentido de responsabilidade com que preenchem discursos mas nunca a conduta. Teríamos representantes políticos eleitos que se demitiriam por se verem envolvidos em práticas ou processos menos claros, de forma a não associar à Democracia que corporizam qualquer suspeição ou mácula. Teríamos representantes políticos eleitos interessados em reformar o sistema político, abrindo as candidaturas a movimentos cívicos. Teríamos representantes políticos eleitos que recusariam assumir mandatos com eleições em que a participação é inferior a 50%. Teriamos representantes políticos eleitos que, por sua iniciativa, abdicariam/suspenderiam a sua actividade profissional durante o exercicio de um mandato, e que manteriam um periodo de nojo após o termo do mesmo.

Isto seria a classe de representantes políticos eleitos à altura de uma democracia amadurecida. Não é o nosso caso. Podemos debater todas estas caracteristicas, e outras, como sendo o colorário da nossa actividade cívica, ou aquilo a que aspiramos, no longo prazo, mas devemos reconhecer que não é essa a nossa realidade actual.

O plano material, de curto prazo, é o da quase absoluta ausencia de todas as coisas que enumerei. É o plano em que uma abstenção não tem leitura alguma senão na consciencia de quem a pratica. Não constitui protesto efectivo pela pragmática razao de que não produz o resultado pretendido. Pior ainda: produz o seu exacto oposto, ou seja, em vez de reformar os maus exemplos, apenas os reforça, contribuindo para a sua eternização, quando não celebração. Ao ser beneficiado pelo metodo de Hondt, o representante político eleito que na realidade teria 10% dos votos acaba por ver ser-lhe atribuido 30% dos votos, simulando uma legitimidade que nao tem, e que retoricamente reclamará, independentemente da intenção de quem se absteve e que com isso criou esse efeito. No plano material há, reconheçamo-lo, uma absoluta descoincidência entre a leitura que queremos que seja feita da nossa abstenção, do nosso voto branco, ou do nosso voto nulo. E perante a evidência de que assim é, só por teimosia podemos continuar a esperar que seja o mundo a adaptar-se a nós, em vez de sermos nós a adaptarmo-nos a ele – que é, na prática, o que fazemos em (quase) tudo o resto.

Eu não discuto as intenções dos abstencionistas neste post. Recordo é que não é a sua intenção a produzir resultados, mas a sua conduta. E fazer de conta que não é a sua conduta a produzir resultados é um exercicio de autismo tão grave como aquele de que acusamos o representante político eleito quando não ouve o nosso protesto. Não pode ser grave que este se recuse a ver a realidade, e deixe de ser grave que nós recusarmos ver a realidade da consequência da nossa abstenção.

Chegados aqui, a questão pode ser colocada nestes termos: como, então, é que se alcança a realidade ideal que pretendemos? Não sou o maior fã das democracias representativas. Têm limitações graves, conhecidas, e que impedem o cidadão de assumir – quando o pretende – um papel mais activo. Mas as democracias representativas são a nossa realidade material, e por essa razão o bom-senso aconselha que adoptemos estratégias adequadas a essa realidade para alcançar o nosso objectivo. A democracia representativa dá-nos algumas ferramentas, de que o voto é das mais importantes. Mas não podemos esperar que sejam os crónicos beneficiados pela abstenção, os tais representantes políticos eleitos, a querer mudar as regras do jogo que tanto os beneficia. Nem com mais de um milhão de insatisfeitos nas ruas, manifestando-se, tal aconteceu. Que fazer, então?

Curiosamente, o mesmo que a extrema-direita (que está longe de ser fã de democracias) fez, mostrando exactamente como se muda um jogo viciado a nosso favor: impondo os nossos jogadores ao jogo, usando as regras deste. Neste caso, elegendo em massa jogadores novos, que mudem o sistema por dentro.

Quando eu apelo ao voto, não o faço por simpatia por este ou aquele partido em particular, mas com o objectivo de reduzir a votação dos partidos responsáveis pela nossa realidade material à sua expressão real, ou seja, mais ou menos 10%. Do que precisamos é que todos os outros partidos tenham percentagens muito maiores, pluralizando o sistema, obrigando a consensos, a cedências, aproximando-nos mais da realidade italiana e afastando-nos da francesa, britânica e norte-americana, onde o jogo se reduz a dois ou três participantes.

Não me revejo, portanto, na ideia de que os direitos dos abstencionistas à abstenção são dissociáveis dos deveres de participação em eleições. Isso fazem as crianças, que querem a brincadeira sem os trabalhos de casa. Temos direitos PORQUE temos deveres. E sem o cumprimento dos segundos temos uma sociedade de pessoas que só exigem e não dão, que julgam viver numa sociedade de entitlements. Somos demasiado exigentes com os outros para não o sermos também connosco. Até porque somos, na realidade, tão maus como o nosso sistema quando nos recusamos a mudá-lo onde ele deve ser mudado. Da mesma forma que um grupo é tão rápido como o mais lento dos seus membros, também nós, como sociedade, somos tão bons democratas quanto o menos democrata e participativo de nós.

Artigo de Pedro Pereira Neto