Da consulta de “rotunda” ao Hospital… – Aida Fernandes

Estou nas urgências do hospital, aguardo e acompanho pacificamente um utente! Deu entrada com um quadro clinico complicado. Olho á minha volta, só vejo rostos tristes, carregados de sofrimento, rostos pálidos, olhares revoltados, atitudes de pânico…é caso para perguntar!…que etapa é esta? A etapa do sofrimento humano!

Estão todos acompanhados de familiares mas o doente que está comigo, só me tem a mim…mas que grande responsabilidade a minha! Ter que substituir um familiar nestas horas de sofrimento e angústia é algo que me deixa a pensar, mas ao mesmo tempo deixa-me a oportunidade de me colocar no lado oposto! Como acompanhante e não familiar, sendo ainda frequentes as idas ao hospital em serviço, consigo ver tudo isto com outros olhos, os olhos de quem já aprendeu muito com a experiência, os olhos de quem aprendeu muito com o sofrimento, os olhos que a cada dia e a cada ida a um episódio de urgência, conseguem captar algumas diferenças do comportamento humano.

Acompanhar um utente e não um familiar difere somente nos laços afectivos, sempre me ensinaram que não nos deveríamos prender demasiado, é sabido que deve existir um tipo de ligação que nos possa “separar” para que não soframos constantemente! No entanto nestas situações sentimos que a realidade é outra, sentimos a necessidade de os confortar sendo que para isso é quase inevitável que nos apeguemos demasiado ao seu sofrimento.

Na sequência deste episódio de urgência, dá entrada um “velhinho” acompanhado pela filha…a senhora murmurava em tom baixo, não sei o que lhe aconteceu, ele quase não fala e hoje parece um papagaio! Ao mesmo tempo ouve-se o “velhinho” a dizer em tom alto,… não quero ir embora daqui, quero morrer! Não quero ir para tua casa! Ninguém conseguia ficar indiferente ao discurso do senhor e ao mesmo tempo ao espanto da filha!
Fui ouvindo, observando atentamente todo o desenrolar do episódio, e sem que nada soubesse da história deste homem, deu para reparar que a relação com a filha não era das melhores! Muitas vezes vão mais bem acompanhados os utentes de uma Instituição (e não é para evidenciar o meu trabalho!), do que alguns que se fazem acompanhar de familiares! Esta senhora (filha) não tinha a menor paciência para entender o que se estava a passar.
As horas foram passando, entretanto aguardavam-se resultados e eu a pensar para mim…onde é que eu já vi isto! Falar como um papagaio quando o seu estado normal é de poucas palavras! “Cheira-me” a algo familiar! Quase aposto que este senhor tem uma infecção urinária!
Perante o discurso do senhor, fiz questão de o interrogar,…que se passa? Perguntava eu… o senhor tem dores? Dizia ele novamente:-eu não quero ir embora, quero morrer aqui!

Ai sim, mas o senhor sabe porque veio aqui? Tudo menos para morrer, aqui só vem quem se quer curar! O “Homem” olhou para mim, e por momentos pensei que me ia insultar! Mas não! Andei com sorte! Ele somente perguntou:-a menina (fiquei logo toda vaidosa…a ser tratada por menina!) é daqui do hospital? Pela farda ele concluiu que deveria ser, o que me pareceu ter ainda um raciocínio lógico! Eu respondi:-não, eu só perguntei porque gosto muito de conversar com pessoas sábias! O Homem riu-se! Acrescentou:- pelo menos não me ralha! Claro que não:-porque haveria de ralhar, o senhor não fez asneiras nem me insultou! Eu só queria conversar um bocadinho, nada mais, apenas para entender o que se passa consigo. A filha continuava a murmurar e ouvia-se:-ele não parece o mesmo, cada vez fala mais, eu ate estou com medo!

Falei também um pouco com a filha, já não sei quem estava melhor! Ela parecia cansada, esgotada e sem paciência! Acho que ela estava a precisar de conforto, via-se que tudo aquilo para ela era novidade! Hospital…urgências…ambulâncias….Para muitos ainda é quase uma primeira vez!
Chamam pelo nome do pai e ela aflita dirige-se para o consultório para ver o que o médico tinha para lhe dizer. Fiquei ansiosa e nem me tinha apercebido, mas queria saber o que tinha afinal aquele homem que mais parecia um papagaio (como dizia a filha)!
Como tinha que permanecer ali, fiquei atenta e logo que a senhora saiu do consultório é evidente que lhe perguntei! Resposta:- o médico deve estar maluco, diz que o meu pai tem uma infecção urinária! Tanto tempo aqui á espera para isto! Se calhar uma infecção urinária é que lhe mexia com a cabeça…nunca tal vi!

Pois bem, eu tinha acertado no diagnóstico! É a prova de que a experiencia faz o monge! Tentei explicar á senhora que era possível e que este tipo de comportamento é um dos mais comuns, sendo que o outro é precisamente o oposto, uma apatia total!
Despedi-me do “velhinho” e ainda acrescentei:-não se esqueça que o hospital é um sítio para curar e não para morrer! Vai ficar bom rápido e já não vai querer morrer!…

O homem sorriu novamente e com um ar doce e meigo disse:-parece que não tenho nada de especial, ainda vão ter que me aturar mais algum tempo.
Este é o comportamento da maior parte dos quadros clínicos com infecções urinarias…se foi novidade para alguns não sei, para aquela filha era totalmente desconhecido a ponto de “criticar” o médico! ….Vale a pena pensar nisto…!

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Crónica de Aida Fernandes
A última Etapa