Da India com amor

Era bonita, vista de todos os ângulos possíveis e imaginários, dos retos às curvas dela, que sempre se nos apresentavam, na zona das ancas, apertadas numas calças de ganga justas onde dava vontade de enfiar qualquer das mãos para ficarmos com a certeza de que o elástico da cintura não estava a magoá-la.

Nascida em oitenta e sete sob os auspícios da lua, tinha os olhos muito redondinhos e pequenos, que orbitavam, pelo seu bem-estar, em torno do par de filhos de que nunca se separava o suficiente para não poder matar de imediato as saudades que podia vir a sentir.

Eram somente dois, mas podiam ser mais. Adorava crianças, tanto quanto lho permitia, o espaço ainda livre no coração, que há muito transbordava de amor pelo marido, o qual conhecia desde o tempo dos bancos da escola na aldeia da província indiana do Punjab de onde, até ter de lá saído rumo a Portugal, as únicas notícias favoráveis que chegavam ao casal a viver no limiar da pobreza, foram as da gravidezes da mulher que anunciavam a chegada ao seio familiar de um bebé.

Chamava-se Sukhdeep e tinha frequentemente a expressão de uma mulher curiosa. O percurso de vida tinha-lhe proporcionado uma vida académica curta. Era inteligente e talvez tivesse tomado afeição pelos livros e tirado uma licenciatura na Faculdade de Chandigarh, como a prima, se para ter continuado os estudos do equivalente ao nosso ensino secundário, não tivesse de mudar-se para a capital da província, que distanciava da aldeia onde cresceu, a mais léguas do que as centenas de quilómetros que faltou percorrer para atingir o seu sonho de ser formada em Medicina.

Talvez mesmo formada numa forma de medicina alternativa, tivesse podido ajudar de forma concreta a mãe, que, sem saúde para pegar na enxada, cedo a retirou da escola e tratou de pôr a cultivar pés de milho num terreno baldio que jamais seria seu, a menos que o recebesse de herança do dono que não conhecia. E dentro da medicina, talvez se tivesse especializado em doenças crónicas, que era o mal sem cura de que padeciam as pessoas como a mãe, dispostas a esperar a vida inteira por uma coisa que não havia forma de ser sua.

Prendia o cabelo atrás, com um elástico que cumpria plenamente a sua função, porque segurava a longa cabeleira e não se via, e ainda por cima parecia que só ela tinha habilidade suficiente para desprendê-lo devagar, mantendo o penteado intacto. Sacudia a cabeça a fazia-o, a partir de cima, cair em cascata, cobrindo-lhe o rosto como um véu, como se quisesse privar-lhe as feições de continuarem a ser o centro das atenções.

Trazia engelhada na carteira, uma fotografia de bebé dos filhos revelada no estúdio indiano, em que eram evidentes as parecenças de ambos consigo ao nível do nariz aquilino e da boca. Também a dela era vermelha como uma romã que apetecia saborear aos gomos, e toda ela lembrava uma laranja que dava vontade de descascar para ver como era por dentro.

Sukhdeep transformava-me docemente os dias numa mixórdia de sensações, quando a via nem que fosse de relance, a observar-me espantado com ela, qual ave posta em liberdade mas que ainda na presença do dono fica sem reação para voar.

Exibia uma pele saudável de tom mestiço, do efeito que, nos nascidos daquela parte da Ásia, provocava a prolongada exposição desde pequeninos ao sol. E era insinuante como o olhar de quem passava por ela pensando que embarcar consigo numa aventura era o melhor passaporte para ser feliz.

Tenho escutado, a respeito de outras mulheres, dizer que são belas e encerram no mistério do seu olhar, uma dádiva de Deus. Tenho ouvido isso e até apelidarem os naturais da sua terra de monhés. Estou consciente da realidade. Não ergo em meu redor um muro, nem impeço de me abordarem as pessoas que só pelo aspeto já me dizem qualquer coisa, como é o caso de Sukhdeep.

Se fosse ela nem sei o que faria. Escancarar-lhe-ia as portas do meu coração. Talvez viesse inquirir-me, querendo saber a meu respeito o que, se fosse eu a contar de mim próprio, não escreveria ocupando mais de uma dúzia de linhas, no máximo um parágrafo.