De Cachorro A Choro – Carla Vieira

Desde sempre que o Homem tem tomado a iniciativa de controlar quase todas as espécies de animais que conhece, mas existem algumas espécies que embora sofram o mesmo destino, sofrem-no de bom grado. Estou a falar, claro, dos animais domésticos, nomeadamente cães e gatos (entre outros tantos).

É um facto universalmente reconhecido que todas as crianças querem um cão ou um gato. E alguns adultos também. No entanto, nem crianças nem adultos concebem a verdadeira verdade de ter um animal de estimação: nós estamos a criá-los para eles eventualmente morrerem.

Eu tenho duas cadelas: A Tusca e a Kimi. A Tusca veio parar à minha vida quando eu tinha oito anos. Andava a pedinchar um cãozinho e a minha mãe também queria um. Por obra do destino, alguém algures tinha uma filharada em casa de quem se queria livrar e por isso os meus pais foram buscar o último cachorro da ninhada. Recordo-me de que ela era tão pequenina que cabia numa caixinha de plástico onde eu guardava previamente um conjunto de chá de brincar. E foi na viagem para casa que a minha mãe se lembrou do nome Tusca.

Nem é necessário que eu diga que me afeiçoei à minha cadelinha, pois cresci com ela e já nem consigo imaginar a minha vida sem a ter por perto a marchar com as patas da frente como um soldado em treino… E aí reside o grande problema. Nós arranjamos estes bichinhos porque queremos um tipo de companhia inerente à espécie que escolhemos, mas eles acabam sempre por se tornar parte da família. Os afectos que nos dão podem ser mudos e bruscos, como uma lambidela ou um mordiscar no dedo, algo inofensivo e carinhoso de uma maneira que não conseguimos bem explicar, mas a verdade é que nós os amamos como família e tomamos por garantido que eles acordarão todos os dias enquanto nós vivermos, prontos a pinchar quando nos vêem e a abanar a cauda feitos tolos.

Antes, a Tusca era uma cadela cheia de vida e vendia saúde, facto que admirava os veterinários e me enchia de orgulho. Era a minha companheira e tantas vezes subia comigo para o meu quarto, razão pela qual os meus pais lhe compraram uma “flor” e a puseram ao lado da minha cama para que ela lá dormitasse. Agora tem catorze anos e subir ou descer escadas já lhe causa transtorno ao ponto de ela não subir para vir ter connosco e ficar no ninho horas seguidas até que eu a vá chamar. Há dias em que tenho medo de descer para lhe ir dar de comer, não vá ela não abrir os olhos quando eu lhe puser os biscoitos na tigela. Há outros dias em que o meu coração fica apertado quando a respiração dela se torna lenta e abafada.

A Kimi veio parar à família por esse motivo: para que tanto eu como o meu irmão nos afeiçoássemos a outra vida que não a da Tusca por razões óbvias. Quando ela chegou, eu sabia bem qual era o plano e estava determinada a não ajudar a que se realizasse, tanto é que evitava pegar nela ao colo e sempre que o fazia tinha de lavar as mãos porque não me sentia bem com ela. Claro que não resultou, e agora também já não sei como é que alguma vez pude viver sem aquela cadela à minha beira.

Não sei se vou aprender com esta experiência, mas acho que ninguém aprende. Os nossos animais vão e vêm, alguns morrem e nós achamos que nunca mais vai ser o mesmo mas volta e meia arranjamos mais um e o ciclo fecha-se. Não gosto de pensar na vida das minhas companheiras de quatro patas como uma chama efémera, embora elas sejam exactamente isso. Nem sequer consigo pensar em como vai ser a minha vida sem elas quando sair de casa, mas uma coisa é certa: sei que quando tiver uma casa grande, do estilo da de Sophia de Melo Breyner (com o Jardim Botânico incluído), quero ter três cachorrinhos.

A parte de os cães não durarem tanto tempo quanto eu incomoda-me, tal como incomoda todos os donos que têm ou já tiveram um bichinho e o viram envelhecer, quer ainda esteja vivo ou não. Mas nós somos engraçados e temos uma habilidade natural de ignorarmos tudo o que nos incomoda, como se assim o problema desaparecesse.

Resta dizer que seja como for, uma casa sem animais é uma casa incompleta, e embora saiba que a dor de perder uma animal de estimação me vá destruir um bocadinho por dentro, não trocava os meus amores por nada deste mundo, e tenho a certeza de que não há alma que discorde comigo.

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente