Apesar de deter apenas vinte e três anos de idade já tive a oportunidade de viver muito. Claro que o “muito” é discutível e dependerá sempre do termo de comparação. Numa altura em que a praxe está em discussão na praça pública esta é também uma oportunidade para mostrar uma outra face da praxe em Portugal. Uma face que os meios de comunicação social parecem não querer mostrar. Uma face que a própria população portuguesa parece não querer ver.
O meu percurso até chegar á universidade pode ser resumido de forma muito breve. No final do 12º ano tive uma mononucleose e perdi praticamente todo o terceiro período levando-me a descer as notas finais. Tive então de repetir o último ano do secundário para nos Exames Nacionais tentar levantar as notas e, consequentemente, subir a minha média. Felizmente o objectivo foi conseguido: a média subiu e permitiu-me entrar no Ensino Superior. Contudo não entrei no curso que queria (Ciências da Comunicação) mas sim no que a média permitiu dentro dos meus interesses pessoais (Ciência Política).
E é aqui que surge a praxe na minha vida. Eu não sabia o que era a praxe. Pelo menos a verdadeira praxe. Aquilo que conhecia era o que a comunicação social dizia (e que estava a anos-luz daquilo que é a praxe na sua essência). No meu primeiro dia de praxe estava com algum receio do que ia encontrar.
Ainda hoje os meus colegas e amigos, que naquele dia me receberam, trajados e prontos a praxarem-me, brincam comigo tamanha era a minha timidez. Enquanto outros caloiros respondiam, e desafiavam os trajados, eu limitava-me a fazer o que me mandavam. Se me mandavam colocar os olhos no chão era isso que eu fazia pois sabia que se ousasse olhá-los nos olhos sofreria as consequências.
E se ao início do dia não achei muita piada aquilo da praxe, no final do primeiro dia estava rendido. Tinha conhecido grande parte dos colegas que me viriam a acompanhar durante três longos, e simultaneamente curtos, anos.
No dia seguinte lá estava eu, bem cedo, pronto para mais exercícios, actividades, jogos e brincadeiras. A timidez já a tinha perdido, o que tornou esse segundo dia (e os restantes) bem mais prazerosos. Gritei como nunca antes tinha gritado. Fiz figuras absolutamente ridículas, como nunca antes sonhara fazer.
Dei por mim agarrado a pessoas que tinha conhecido há um dia atrás e a defender com eles um curso que era o nosso (ainda que só há um dia). Enchi flexões, fiz “pulos de galo”, fiz abdominais, tive “castigos” por actos que outros tinham cometido (porque na praxe um dos lemas é o “por um pagam todos”).
O ano de caloiro foi um dos melhores da minha vida. Continuava tímido e algo reservado, mas as melhorias em relação ao primeiro dia de estudante universitário eram bem notórias.
Em Maio desse ano completei uma das mais importantes fases da minha vida académica: fui enterrado e passei de caloiro a mancebo. Finalmente tinha o privilégio de vestir o traje académico. O momento em que a minha madrinha académica me traçou a capa pela primeira vez é algo de tão único quanto ser pai ou avô.
A partir desse momento passei a fazer parte da Comissão de Praxe do curso de Ciência Política (ou CPO como nós o tratamos). O primeiro ano enquanto trajado (ou segundo a hierarquia da praxe, pastrano) foi de aprendizagem. Afinal estar daquele lado da barricada não era tão fácil quanto eu pensava.
É que agora que era trajado tinham acabado os direitos e passaram apenas a existir deveres. A verdade é que nem todos têm perfil para “dar ordens” e se todos podem envergar a capa ao braço (ou ao ombro, depende do número de matriculas que tiver) não é menos verdade que apenas uma pequena percentagem o faz da forma correcta.
Finalizado o primeiro ano enquanto trajado dei por mim a pensar: “afinal ser trajado e pertencer à Comissão de Praxe dá muito mais trabalho do que eu alguma vez pensei, ser caloiro era muito mais simples.” Dei por mim meio desiludido. Afinal o “poder” que eu pensava que um trajado possuía era relativo. Não fazia aquilo que queria, ou que me dava na “real gama”. Tudo tinha de ser discutido e aprovado por todos. A autonomia é muito reduzida.
No final do ano de caloiro todos pensam que sabem verdadeiramente o que é a praxe. No entanto quanto mais tempo passa mais evidente se torna que nunca saberemos tudo sobre a praxe. Por mais matrículas que tenhamos a praxe acaba sempre por nos ensinar algo que não sabíamos, ou uma lição que julgávamos aprendida há muito.
Quando concluí a licenciatura ainda não sabia se entraria, ou não, no mestrado. Como tal aqueles poderiam ser os meus últimos meses na universidade. E principalmente os últimos meses na praxe.
Quando me “despedi” de tudo e todos (pensando que seria a última vez que usaria o traje) chorei como poucas vezes tinha feito em toda a minha vida. Felizmente acabei por entrar no mestrado e como tal, no ano seguinte, lá estava eu novamente, trajado como sempre, a dar tudo pela praxe.
Hoje encontro-me novamente numa fase difícil: o fim de um ciclo. Estou no quinto, e último, ano. Aquele onde terminarei o mestrado e darei por concluída esta fase da minha vida. E só quem passou por isto pode compreender o sofrimento que é saber que está para breve o “adeus” à praxe. Por um lado é bom porque é sinónimo que tudo correu pelo melhor, academicamente falando. Mas por outro é mau, porque representa a saída de algo que tanto amo e sem o qual quase não sei viver. Na quinta-feira passada usei o meu traje académico pela última vez. Mais uma vez discursei perante os meus colegas. Desta vez não chorei, mas aqueles momentos custaram-me mais do que podem imaginar. Parte de mim morreu naquele dia.
Mas muito mais está para vir. Outras experiências, amizades, bons e maus momentos. Mas nada do que o destino me reservou se poderá equiparar a isto. Ao ser caloiro. Ao envergar com todo o orgulho do mundo o traje académico. Ao ter afilhados académicos que em muito me orgulharam.
A praxe como eu a entendo, e como a mesma é praticada na universidade que frequento, é algo que considero absolutamente vital na experiência académica. Quem não está por dentro da realidade da praxe tende a cair nos lugares comuns e a ser completamente levado pela comunicação social a acreditar que toda a praxe é “má”. Aquilo que vivemos, primeiro enquanto caloiros e depois enquanto trajados, é algo de único. São verdadeiras lições de vida. Banhos de humildade e respeito. Uma forma de percebermos até que ponto estamos dispostos a sacrificarmo-nos a nós, e aos que nos rodeiam, em prol de um bem maior.
A praxe é tudo isto e muito mais. É literalmente um modo de vida. Por muito dura que seja a praxe, por muitos sacrifícios que tenhamos que fazer, por muito que a nossa vida pessoal e as nossas horas de estudo sejam prejudicadas, no final vai sempre valer a pena. Na praxe, nunca teremos direito a recompensas. Não existe tal coisa na praxe. A única recompensa que teremos é o reconhecimento dos nossos colegas trajados, e dos caloiros.
Mantenham junto de vocês quem vos é querido e valorizem a verdadeira amizade. Se fizerem tudo isto vão estar no bom caminho para atingir a felicidade.
Descubram o(s) vosso(s) interesse(s), dêem o máximo por ele(s), empenhem-se, lutem, corram atrás do(s) vosso(s) sonho(s) porque ninguém o fará por vocês. A vida académica é mesmo uma das melhores fases de toda a nossa vida. Vivam-na ao máximo porque o tempo não volta para trás e podem não ter uma segunda oportunidade.
A vida académica é exigente, dura e ocupa grande parte da nossa vida. Contudo, concluído o percurso e olhando para trás acabamos por constatar que tudo valeu a pena. Nunca esquecerei a universidade que me formou nem o curso que me acolheu. Amarei CPO, os seus trajados e os meus afilhados para sempre, passem os anos que passarem.
Boa semana.
Boas leituras.
Crónica de Bruno Neves
Desnecessariamente Complicado
Visite o blog do autor: aqui
Boa noite.
A leitura foi boa, simples e emotiva , e esclarecedora 😉
Parabéns.
Júlia
Obrigado Júlia, ainda bem que gostou 🙂
Cumprimentos,
Bruno Neves
Deveras fantástico!
“A praxe como eu a entendo…”
Cada estudante tem uma definição diferente sobre praxe! Devem de haver mais de 500.000 definições diferentes de “praxe”…
Pelo que entendi você não tinha amigos nem conhecia ninguém antes de entrar para a universidade..
Andava sozinho no secundário?
Você não teve uma adolescência normal?
Perdeu a virgindade aos quando entrou para a faculdade? ou seja após os 18 anos?
Não sei que raio se passou consigo no secundário.. mas eu ainda tenho amigos de lá..