De Cima Para Baixo – Carla Vieira

Geralmente evito falar sobre o meu emprego, porque acho que não é para aqui chamado. Tentei tentei tentei, tentei mesmo muito falar de outra coisa qualquer, mas isto já me está a escapar das mãos. Já não aguento mais. Vou ter de falar do meu emprego.

Primeiro vale dizer que como muitos Portugueses, arranjei este emprego por meio de cunhas. Lamento se isto ofende puristas, eu também queria arranjar emprego pelo meu próprio mérito, mas infelizmente não há punhados de gente que queria contratar licenciados em Filosofia, e eu preciso de ganhar dinheiro. Comecei por trabalhar em regime part-time para ajudar a secretária da empresa, e depois passei a full-time. É importante referir isto porque no regime part-time pelos vistos não tinha acesso à loucura predominante e inerente a este tipo de emprego.

“Este tipo” significa socializar com pessoas.

Pouco depois de começar a trabalhar full-time tive de ir ao médico, e pelos vistos a consulta estava marcada para um dia super cheio, e nem fui atendida pela enfermeira que me segue. Consegui estar na fila de espera para dizer “tenho uma consulta marcada” mais tempo do que demorou para ser atendida, mas ainda assim aproveitei para ver a paisagem, que é como quem diz vi as secretárias trabalhar.

Para quem não sabe, este tipo de trabalho consiste em atender telefones, marcar consultas tanto do utente que está no balcão como do que está a ligar insistentemente, chamar os utentes que vão ser atendidos, e claro, por vezes também engloba aquela coisa muito bonita que é levar com as frustrações de quem quer gritar. Nesse dia em que eu estava à espera na fila para dizer olá à senhora atrás do balcão, uma outra utente estava a ser informada por uma secretária de que, infelizmente, teria de ser atendida por outro médico que não o de família, porque o de família não estava presente.

Onde eu trabalho, quando isto acontece, ligo com antecedência aos utentes e marco as consultas para outra altura. Por isso, sei que por muito frustrante que isto seja, ainda é mais frustrante não ser avisado com antecedência de que não vamos ser atendidos pelas pessoas com quem já temos alguma familiaridade. Eu também não gostei de saber que ia ser atendida por outra pessoa, e foi um serviço menos bom porque a enfermeira não me conhecia de lado nenhum e não sabia o que fazer quanto à minha situação. Foi chato para mim ter de marcar outra consulta e ter ido basicamente gastar o meu tempo sem resolver coisa nenhuma. No entanto não cheguei ao valente extremo de gritar com a secretária como a tal senhora do parágrafo anterior.

Ou era porque isto era um desrespeito, ou porque a secretária estava a fazer um mau trabalho, ou porque não queria ser atendida por mais ninguém, e pouco faltou para berrar que o médico tinha de ir lá atendê-la de propósito!

E agora digo o seguinte como pessoa decente: vocês sabem por acaso o que é que as secretárias fazem? Nada mais, nada menos do que cumprir ordens. A culpa não é delas se o vosso médico decidiu tirar o dia, por isso lamento, mas não é com elas que têm de gritar. Descarreguem as frustrações, gente, por todos os meios que quiserem, menos gritarem com alguém que não tem a mínima culpa do que se passa pelos recônditos da empresa para a qual trabalham.

E sim, também já gritaram muito comigo. Já me chamaram incompetente, já me desrespeitaram, já me olharam como se eu fosse um valente verme, isto sem contar com as pessoas às quais eu vou abrir a porta e sorrio e digo “bom dia” ou “boa tarde” e têm a distinta e autêntica lata de passarem por mim como se fosse invisível. Se isto me chateia? Claro que chateia. Não é por ser uma mera empregada atrás de uma secretária que ache que o resto do mundo me deva tratar como uma pessoa menos importante. Mas também, isso é o menos. Há quem tenha complexos de grandeza e não goste de interagir com a plebe, e pouco me importa o narizinho empinado.

Agora, não só a nível profissional como a nível pessoal, abomino quem me ponha as culpas de algo que não posso sequer controlar. E é desta posição que vos peço, pela alma do santinho que mais adorarem, para por favor calarem as vossas grotescas bocas antes de gritarem com a pessoa “reles” e “baixa”, e pensem para vocês próprios se gritariam assim com o chefe da empresa. Pelo que eu já testemunhei em primeira mão, vos garanto que se fossem falar com o manda-chuva da instituição acerca do que está mal, primeiro limpavam-lhe o rabinho.

Não estou a falar em nome de todas as pessoas que coitadas, têm de fazer o que eu faço para receberem salário. Eu limpo o meu próprio rabo, obrigada. Mas não limpo o vosso, portanto por favor não me caguem nos sapatos.

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente