De democrata a puta

Esta é a minha história, de alguém que vocês já viram diversas vezes, sem nunca me terem posto a vista em cima, de saltos altos, lábios esborratados e roupa insinuante rasgada do uso. Sim, sou uma puta, uma puta velha.

Mas, nem sempre fui assim. Outrora, tive uma família que gostou de mim, onde todas as escolhas eram feitas em democracia. Para vocês entenderem, o meu pai até colocou a votos, o local para onde iríamos de férias. Eu votei Roma, sempre me fascinou a história que aprendia na escola privada onde estava matriculada, porém, as minhas irmãs votaram República Dominicana, e lá fomos nós, com respeito pela democracia caseira para esse paraíso.

Não sei quando tudo mudou, se é que alguma coisa mudou, talvez a morte da minha bem remunerada mãe, ou a perda do emprego, também ele bem remunerado, pelo meu pai. O certo é que a partir daí, as escolhas reduziram-se. Inicialmente, ainda as fazíamos sobre comida, e tanto esparguete consumi, sem gostar muito dele, a seguir, começamos a fazer escolhas nos materiais para a escola. Será mais necessário, marcadores ou lápis de cor, nova mochila ou lanche com sabor, telemóvel ou um ainda utilizável computador? Que engraçado, pensando bem, a falta de dinheiro até trouxe um maior naipe de escolhas. Pelo menos inicialmente, porque depressa, essas questões tornaram-se afirmações negativas, pois não havia dinheiro para nenhuma das escolhas.

E assim cresci, e mesmo assim singrei. De facto, era uma aluna exemplar, que aliava uma grande capacidade intelectual, a uma não menor capacidade em encantar todos que me colocavam os olhos em cima, num misto de admiração, e porque não, de cobiça masculina.

Nada que me distraísse, fui criada por um pai católico, que me incutiu os necessários princípios para viver em conformidade com o Criador, como tal, passava incólume por tais olhares.

A democracia, essa continuava a funcionar, juntei-me com pai e irmãs, e decidimos o meu futuro, todos, excepto eu, votamos na mesma direção. Estava decidido, eu iria para a Universidade que me deu uma bolsa. Escolha difícil, pois o que o meu pai fazia entre subsídios e biscates mal dava para colocar comida na mesa.

Não vou mentir, acordei animada no dia em que me ia embora, no dia em que iria exercer a vontade da maioria como boa democrata, e de repente, a animação matinal caiu com a minha irmã no chão, todos pensamos que era somente um desmaio fruto da saudade, depressa percebemos que tal não era verdade.

Depois de vários exames, o pior diagnóstico veio, era a mesma patologia que nos tinha retirado a nossa progenitora.

Sem escolha, fiquei, trabalhei, e mesmo assim, em várias dividas me afundei.

Até que recebemos a pior notícia, mal tínhamos dinheiro para a medicação, e ela só se salvaria com um tratamento correspondente a mil e setecentos e noventa e dois meses dos nossos rendimentos.

Choramos, desta vez, parecia não haver escolha. Até que ela surgiu, sob o olhar dum valoroso médico, aquele que poderia curar a minha irmã, não na sua direção, mas na minha. Ele olhava para mim sem qualquer pudor. Percebi que tinha uma oportunidade, e arrisquei.

– A minha virgindade pelo tratamento da minha irmã.

Foram estas as palavras que lhe direcionei, para minha surpresa, ele rapidamente, e até avidamente, aceitou. Fui fiel à nossa democracia caseira, contei ao meu devoto pai, às minhas irmãs, que depressa me demoveram da ideia. Ele e elas choraram ao fazê-lo, sabiam que estavam a matar uma de nós para salvar a minha honra.

Princípios ou vida, será isto escolha sequer? Não, não era. E como não era, matei a nossa democracia. Ele não foi meigo, fez um festim do meu corpo virginal, deixando o pequeno coágulo para o final, utilizando-me em maneiras que eu nem sabia serem possíveis. Três horas e trinta e um minutos depois, acabou.

O meu pai não fez perguntas, aceitou o dinheiro com a mesma facilidade com que  aceitou a minha desculpa pouca imaginativa, a ignorância voluntária salvava-o da realidade.

Eu, bem, eu lá me tornei numa puta, não velha, mas jovem. Não feia, mas linda. Não barata, mas cara. E todas as dívidas que entretanto se multiplicavam, paguei sem dificuldade, com a camuflada complacência do meu pai.

E tudo passou, e tudo melhorou. O meu pai finalmente arranjou um emprego, voltou a erguer a cabeça na Igreja que frequentava, e as minhas irmãs voltaram para o colégio. 

O dinheiro realmente compra tudo, as escolhas, a democracia e os princípios aterraram na nossa casa sem sequer termos dado conta, pelo menos eu não dei, até ao dia em que por unanimidade, o meu envergonhado pai abriu os olhos,  e em conjunto com as minhas irmãs, fazendo uso da renovada democracia caseira, votaram por unanimidade, que não havia lugar para mim junto deles. O resto, bem, o resto é a história duma puta, duma puta velha.