Depois da tempestade, espera-se a bonança – Laura Paiva

Dei comigo a apreciar a face das pessoas que passam, cabisbaixas, com um olhar perdido e mesmo triste, sem o esboço de algo que se assemelhe a um sorriso.
São olhares frios, sem vida, sem sentimento. Semblantes carregados pelo que, presumo, seja o peso das suas vidas. São expressões vazias em caras lindas, de homens e mulheres, que se cruzam comigo.

Todos “temos dias”, como é habitual dizer-se. Há aqueles em que carregamos, aos ombros, o peso do Mundo. É nesses dias que transparecemos um misto de tristeza e pesar aos olhos de quem nos vê. Às vezes, isso acontece pelas mais válidas razões. Outras vezes, nem por isso!

Quem já não teve um daqueles dias em que percebemos, logo ao acordar, que seria uma bênção que ninguém nos olhasse ou nos falasse? Nesses dias, que gostaríamos fossem muitíssimo mais curtos que o normal, queremos ser invisíveis de modo a passar ao lado da conspiração que o Mundo teceu contra nós.

E não é que nesses dias tudo tem a probabilidade de nos fazer sentir ainda mais miseráveis? Há sempre alguma crise doméstica, logo de manhã – algum electrodoméstico que deixa de funcionar, na pior das hipóteses o próprio despertador. Como não preparamos a indumentária de véspera, nada do que pensamos vestir nos parece apropriado ou combina, as botas ou sapatos que estão mais à mão têm um qualquer problema que nos havíamos esquecido que era preciso tratar (coisa de mulheres). O carro não pega, um furo e ninguém que nos ajude (coisa de muitas mulheres e alguns homens), o trânsito está infernal e cada desvio é uma tentativa frustrada de tentar ser mais inteligente que os outros (coisa de muitos homens e algumas mulheres), é a chuva não dá tréguas e o guarda-chuva já com óbito confirmado. Descobrimos, bem depois de sair de casa, que nos esquecemos de algo imprescindível só porque mudamos de carteira na véspera (coisa de mulheres). É o tacão ou uma unha que se parte, é o “foguete” nas meias sempre que nos esquecemos de colocar, na carteira, umas suplentes (continuam a ser coisas de mulheres). No emprego, onde chegamos com um monumental atraso, nada corre como previsto e a tendência é piorar ao longo do dia. Muito provavelmente, vamos conseguir ser desagradáveis – uma coisa impensável – com o desgraçado do colega mais próximo. Não vamos tolerar, pelo menos de boa cara, qualquer crítica e tudo o que disserem, contra nós, tomará proporções bíblicas e será usado, mais tarde, em futuras quezílias como retaliação.



Continuamos a acumular, a tampa está prestes a saltar!
Podemos segurar a tampa, com as duas mãos, respirando fundo, entrar em casa (se o objecto do esquecimento não for a chave da dita) e rastejar para a cama (que ficou por fazer porque acordamos muito tarde), de luz apagada para que ninguém nos veja (e juntar à colecção uma nódoa negra feita pela esquina do malfado pessiché que, há muito, deveria ter sido doado). Cerrar os olhos, com força suficiente, para dormir bem depressa e mesmo assim, somos forçados a contar os célebres carneiros (e há sempre um que não consegue saltar a cerca e acaba por estragar a contagem, obrigando-nos a recomeçar). Finalmente, adormecemos.
Depois da tempestade, espera-se a bonança.
O novo dia trará outros desafios mas será, decerto, mais macio e meigo, capaz de (quase) nos deixar aflorar um sorriso à lembrança do dia anterior.

Crónica de Laura Paiva
O mundo por estes olhos