No dia em que Deus emprestou os olhos ao meu Pai. – João Nogueira

É domingo à noite. Outra vez.

Escrevo no comboio. Que não é bem um comboio. É uma ponte. Grande. Entre os dois mundos que tenho.

Num ponto cardeal, o amor. No outro, o amor, também. O que é bom. E quentinho. Mas dá nó cegos na garganta.

Sou homem. Não gigante. Só homem. Que se eleva. Que se agiganta. Que cai. Que mingua.

Houve um tempo em que não tinha de desembaciar os olhos para ver melhor. Bastava abri-los. E via tudo.

A janela do meu quarto tinha holofotes. Que davam para a Muralha da China. E para a final do Campeonato do Mundo. E para onde eu quisesse. Ao meu lado, a apontar para as estrelas, o meu Pai. Com a cara que tinha na altura.

O meu Pai. O meu piloto. Que me levava aos sítios antes de eu lá ir. Descolava devagarinho. Volta e meia, estávamos no mesmo sítio. Mas a dez mil pés do chão. A fazermos de Deus. A olharmos de cima para baixo para o mundo. Dizia-me que isto era a América, aquilo Timor e que a bota de cano alto era a Itália. Juntos, eu e ele, passávamos além da Taprobana. Lá, como quem chega à lua,  pegava no meu braço, punha a bandeira na minha mão e ajudava-me a espetá-la no chão. A seguir, dizia que o mundo era meu. E pegava-me ao colo. Depois aterrava. Numa pista de algodão. E eu adormecia. E ele fechava a janela. E desligava os holofotes.

Pai, super-homem que vi chorar. Tinha seis anos. Tu, trinta e três. Como eu agora. Mas tu eras um homem, caramba! Nesse dia,  tiveste os olhos mais bonitos do mundo.Trocaste-os com Deus. Aquele em que acreditas. Choraste o Douro inteiro. Da foz à nascente. Sou daltónico, mas espreitei bem lá dentro e vi tudo com as cores certas. Choraste quando viste o João Pinto a fugir com a Taça nas mãos, pelas ruas de Viena. Não a dava a ninguém. Campeões, campeões, nós somos campeões. Ensinaste-me, com os olhos, que as coisas que não são nada importantes, são muito importantes.

Hoje, de repente, sou eu que tenho trinta e três. E tu sessenta. Não é possível. É uma piada estúpida. Ninguém se ri. Dizes que chegaste aí de Fórmula Um. Num instante.

Ouço. Mas não escuto. Aos trinta e três é-se imortal. O futuro é longe. Como a Austrália. Mas não é. É já ali. Depois da rotunda.

Não sou como tu. Sou só humano, Pai. Lamento. Tens Deus. Mas estás enganado. Só devemos louvar quem é maior que nós. E ninguém é maior que tu. Ninguém.

O comboio chegou a meio. Estou a meio da ponte. Como um maluco. Uma perna para norte. Outra para sul. Faço a espargata. Tenho vida nos dois lados. Os braços da minha Mãe, num! O ventre. O cordão umbilical. Que tem o tamanho do tamanho da nossa distância. Ora pequeno, quando estamos perto. Ora gigante, capaz de dar a volta ao mundo, quando estamos longe. Não sai. Ninguém o corta. Ai deles!

Do outro lado, o fim do meu apartheid. Onde sou Mandela de mim mesmo. Liberto-me. E liberto quem está ao meu lado. E a vida vale mais a pena quando se descobre alguma coisa pela qual se está disposto a morrer.

Em mim, vivem mil Guevaras de barba preta. Um exército deles. Hasta la victoria, siempre! E é a vitória que procuramos. Que é  igual em toda a parte. É a paz. Não o silêncio. A paz. Que é quando coração bate com mais força.

Quero tudo. Os meus todos. As coisas boas só são boas quando são partilhadas. Com quem se gosta. E eu gosto de muitos.

Tenho memória. Estremeço. Paro. Saem dois de mim. Um menino que corre para o que já foi. Um homem que corre para o que há-de ser. Olho para os dois e vejo quem sou. Sou os dois. Fecho os olhos com força e voltam a mim. Os dois! Sei quem sou. Sei para onde vou. E sigo. Com as costas direitas.

O comboio chegou agora. É domingo ainda mais à noite. Está escuro. Que é quando vejo melhor. Pego na mala. Sai fumo da minha boca. É do frio. Corro. Sou bala. Porque tenho gente à minha espera. Gente da minha terra. Aliás, gente que é a minha terra. A minha Pátria. Outra vez o meu Pai. Com a cara que tem hoje. Com os olhos de antigamente. Grandes, que riem quando me vêem a chegar. De longe.

Estou no extremo norte da ponte, agora. Onde estive sempre. Sei a vida de cor, aqui. Onde construí a história do país que sou. Onde ergui castelos. E perdi batalhas. E sangrei sem sair sangue. E chorei quando o amor doeu. E ri quando o amor sarou.

Voltei à janela. A dos holofotes. Ao meu lado, o meu Pai. O meu piloto. Com sessenta, a apontar para as estrelas. E eu a olhar. Ainda lá cabemos os dois. Vamos caber sempre, Pai. Que agora queres é ser avô.

Disse-lhe que ia. Ele sorriu. Só. Com os olhos, disse-me que só um tolo não ia para o pé daquela por quem está disposto a morrer.

Não sou como tu. Sou só humano, Pai. Lamento. Tens Deus. Mas estás enganado. Só devemos louvar quem é maior que nós.

E ninguém é maior que tu.

Ninguém.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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