É domingo. Mas domingo à noite. As férias já vão na Guiné. Ou no Nepal.
Acabaram. Os olhos ficam pequeninos. Vou de moreno a branco em meia-dúzia de segundos. É Verão, eu sei .Lamento, em mim é Inverno. Hoje, sou um limpa-pára-brisas a sacudir a chuva para longe. Mas ela não vai.
Isto passa. Amanhã, talvez. Depois de amanhã, seguramente.
Sou uma estranha forma de vida. Queixo-me das rugas. Dos cabelos brancos. Do tempo. Aliás, sou um sindicato inteiro de homens e mulheres a fazer escarcéu contra o tempo. Faz cem metros em quatro segundos. Passa num instante! É um trafulha! E eu gosto é de gente honesta!
Vivo na via esquerda da vida. Quero chegar rápido. Errado. Isso é contra-ordenação. A vida é um carocha azul-bebé, em terceira, a passear na marginal do Douro. Devagarinho, a olhar para a Foz. Mas com olhos de ver!
Agarro-me ao sonho. Cravo-lhe bem fundo as unhas. Não quero que vá à vida dele. Sou sábado. Sou uma noite de Agosto no alpendre da Elsa, de manga curta, a beber sangria fresquinha e a rir.
Vivo à espera que o tempo passe, para entrar a vida. Errado, outra vez. A vida também tem segundas-feiras e dias para preencher a papelada do I.R.S.
Neste balancé que é a vida já fui empurrado para o chão uma ou outra vez. Puseram-me mercúrio no cotovelo e nos joelhos, mas não era aí que doía. Atenção, sem dramas! Na maior parte das vezes não caio. Parece que tenho quatro anos outra vez e o meu pai dá balanço, enquanto a minha mãe fica à frente para não me deixar cair. É bom.
Às vezes, a vida bifurca. Ou é para aqui ou para ali. Agora escolhe!
Ficas a meio. Ameaças ir para aqui. Ameaças ir para ali. Queres os dois. Só pode ser um.
Sou do Porto. A minha família também. Família, não. Pai. Mãe. Irmã. Assim é mais justo. A minha outra família é de Lisboa. Outra família, não. Namorada. Assim é mais justo!
Eu sou deles todos. São a minha Pátria. Falamos todos a mesma língua, sem abrir a boca. Temos a gramática nos olhos. E nas pernas. Que tremem, quando nos vemos à chegada. E à partida.
Quero estar com todos num só lugar. Mas não dá! A Ana, que é minha irmã, está a Norte. A Elsa a Sul. Eu nunca chego a estar em banda alguma. Sou um atleta, apesar da ausência de abdominais. Tive-os, outrora. Entretanto faleceram. Sou o que corre como um desalmado atrás dos pontos cardeais. O Norte, de segunda a sexta. O Sul, ao sábado e ao domingo. Mentira! O domingo não conta! É como o último dia de férias. Custa mais. Custa mais pensar que vais sentir saudades do que senti-las, de facto.
Ora angústia, ora felicidade. Sou eu, o João. É isto! Estou resumido.
Sempre com o farnel de um lado para o outro, com o cabelo erecto e com os olhos ora vivos, ora murchos. Sempre a arrastar a mala. Em Santa Apolónia ou em Campanhã, a música é sempre igual. “Senhores passageiros, lamentamos informar que o comboio Intercidades com destino a Freixo de Espada à Cinta está setecentos e sete minutos atrasado. Pedimos desculpa pelo incómodo. Ainda que ligeiro.” Quem corre por gosto também cansa!
Mas o amor é uma fixação geográfica onde aterro sempre que chego a um sítio ou a outro. Passo sempre pela porta de embarque sem tirar as moedas do bolso, sem mostrar o passaporte. Terrorista é todo o homem que nunca pensou desembarcar ali. Porque, ali, nas chegadas, há sempre alguém à minha espera.
Alguém, nunca todos. Nunca todos ao mesmo tempo. A Ana. A Elsa. O meu pai. A minha mãe. Isso é que era. Era Natal. Aquele de quando tinha sete anos!
Estou com a língua de fora. Sou um maratonista exausto, dobrado sobre mim, com a mão na barriga, a respirar com muita força. Transpiro, também!
Eu já decidi! O que é raro! Não me levem a mal.
Vou atrás da vida. Por esta luz que me alumia, se não é a decisão mais difícil que tomo, desde que saí disparado, placenta abaixo, do ventre da minha Mãe. Não vou hoje. Nem amanhã.
Mas vou.
Um dia há-de ser Natal. Aquele de quando tinha sete anos.
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
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Pois é, e um dia dei conta e tinha uma madeixa grisalha de cada lado e as mesmas rugas na testa e nos cantos dos lábios que o meu Pai (Mãe, estás cheia de enrugadinhas… Mãe, pinta lá o cabelo da cor do da Mérida…)!; Bolas, esta miudagem repara em tudo… E a Vida todos os dias traz mais surpresas, porque o segredo com eles os dois é deixá-los mostrar-me o que me Ela me reserva.
Lindo, obrigada!
Olá, Ana Isabel! Fico contente por ter gostado e, sobretudo, por ler. Muito obrigado. 🙂
Excelente!!!!!!!!!!!!!
Muito obrigado, Elisabete, pela atenção. Beijinho.
Olá, João.
Ainda a absorver o conteúdo do que escreveu.
Sabe, acho que temos cabeças muito parecidas (apesar de eu ser bem mais loura).
A sua forma de ver o intrincado da vida, das vidas, das vidas das pessoas, das pessoas… é tão, mas tão parecida com a minha.
Há uma corrente filosófica que defende exactamente o papel da angústia nas nossas vidas. E essa angústia advém do poder das escolhas feitas a todo o momento.
Ou seja, caramba, e isto é mesmo difícil, independentemente do que se escolheu, por se poder ter escolhido outra coisa, havemos de levar com a angústia de termos escolhido o que escolhemos e não termos escolhido outra coisa qualquer.
Quer estar no Porto? E em Lisboa? Quer estar com a Ana e com a Elsa? E ao mesmo tempo? E com os pais? E com os amigos? E tudo misturado, assim, tudo ao molhe?
O raio da angústia…
Acho que sabe que não poderá viver sem ela.
Mas também acho que sabe que vai continuar a fazê-lo.
E que o consegue fazer, salvo alguns momentos em que o peito se aperta um pouquinho mais (como aquando da redacção do texto).
Gosto dos seus textos.
Fazem-me pensar.
Sinto-os e identifico-me.
Obrigada.
João, outro MAGNÍFICO texto. Que conteúdo,… deixou-me a pensar,… aliás o João tem esse condão,…
Abraço-o com admiração
fatima ramos
Natália, muito obrigado. Fico muito contente. Perspicaz o seu comentário em relação à angustia 😉 É isso mesmo!
Eu é que agradeço por ler o que escrevo.
Fátima, cara colega, muito obrigado. É sempre muito simpática. Retribuo o abraço com admiração, que vai do Porto a Lisboa num instantinho 🙂
Lindo, João muito lindo João, mais uma vez adorei…mas sabe nós não queremos que vá para sempre…para nós é bem melhor tê-lo confuso entre lá e cá :)…Muito bom mas com a intensidade de vida que tem e com a intensidade de alegria que transmite á volta dos que o rodeiam não é de admirar que escreva tao bem…
Com carinho de todos cá de casa, que apreciam a sua escrita mas mais que tudo o bacana que é….Beijinho desejamos feliz natal com a Elsinha cá….:)