Dia Internacional contra a Discriminação Racial – A Vivência na pele dos Ciganos

Hoje, caro leitor, segundo a Organização das Nações Unidas é o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial.

Segundo a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), “entende-se por discriminação racial qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência em função da raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica, que tenha por objetivo ou produza como resultado a anulação ou restrição do reconhecimento, fruição ou exercício, em condições de igualdade, de direitos, liberdades e garantias ou de direitos económicos, sociais e culturais.”

E, a verdade é que muitos dos cidadãos dizem não ser racistas, mas existem dados estatísticos de queixas formalizadas! Se existem queixas, existe racismo! O racismo vai desde um olhar, a uma palavra verbalizada, até a uma atitude de rejeição concreta! Sejamos humanos porque se queremos ser respeitados, temos que saber respeitar acima de tudo! De alguma forma a frase “a tua liberdade acaba, onde começa a liberdade do outro” tem um sentido de existência!

Para vos dar exemplos concretos de discriminação sentida na pele; de perseverança, apesar de tudo; de luta diária; de sentido de justiça (ou luta para tal), quero apresentar-vos duas pessoais reais, dois jovens ciganos: Ele chama-se Francisco Azul e ela chama-se Guiomar Sousa!

O Francisco tem 25 anos e é natural da Vidigueira. É uma pessoa determinada e bem resolvida quanto àquilo que o distingue da sociedade circundante (ou será que é a sociedade que é diferente dele?)!

A Guiomar tem 36 anos, é uma ativista, ganhou o prémio de “cigana do ano” e, é da opinião que as mulheres ciganas estão em processo de mudança e a conquistar o seu espaço, não só no seio familiar, mas na sociedade em geral.

 

Quando começámos a falar sobre o racismo, a Guiomar disse que, quando era mais nova nunca teve noção do que era o racismo. Nas suas próprias palavras, “vivia protegida dessa doença que é o racismo”. Sentiu pela primeira vez quando teve necessidade de alugar casa, a família começou a crescer e as necessidades foram aumentando. Relatou que em chamada telefónica diziam-lhe que a casa estava disponível, mas que pessoalmente negaram o arrendamento porque viam que era cigana. A Guiomar diz que a maior discriminação que sentiu foi nesse contexto e, no fundo, é o que a mais prejudica, porque impede-a de dar uma vida digna aos filhos.  Essas situações, nas suas próprias palavras, fazem-na sentir-se como um bicho, uma coisa que não tem valor algum.

Na voz do Francisco, a lógica de achar que por ser  cigano não tem acesso aos direitos consagrados nos vários documentos, por exemplo, os direitos plasmados na Constituição da República Portuguesa e, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é absurda. “Houve, momentos em que me senti diferente e, sem dúvida, que o preconceito em torno da minha etnia ainda é uma realidade no nosso País. E que, sem sombra de dúvida, temos que lutar para alterar. A vontade na mudança está cá, só preciso que me permitam agir com todos os meus colegas e oiçam, respeitem e aceitem que nós, ciganos, somos tão dignos de trabalho, como qualquer cidadão português. Somos tão inteligentes, independentemente da etnia a que pertençamos, e somos tão responsáveis como qualquer outro indivíduo. Somos nós, portugueses, seres da sociedade e ciganos que queremos ser tratados e respeitados pelo que somos, pelo que podemos fazer em prol da sociedade, sem que isso seja necessariamente mau, só pelo facto de pertencermos à nossa comunidade.

Ainda existe muito a ideia cristalizada de que os ciganos não são capazes, portanto quando chegam a um lugar com alguma relevância (faculdade, empresa, etc..), as pessoas têm ideia de que estamos a ‘roubar’ a oportunidade a alguém com mais capacidades do que eu, para estudar ou trabalhar, como tal, torna-se injusto. Mas injusto é a forma como as coisas são pensadas e, é aqui que temos que trabalhar. Existem tantos ‘Franciscos’ por aí. As oportunidades devem-nos ser também dadas, e não apenas o racismo e preconceito para com a nossa etnia.  Existirão sempre pessoas que duvidam do nosso potencial. Olhar de lado e julgar o todo pelo igual é algo que acontece frequentemente.”

 

Fonte: Público

 

Uma das ideias concebidas na cultura não cigana, é a de que muitos dos casamentos ciganos são concebidos entre pessoas prometidas desde o nascimento. Não é assim! O Francisco disse-me mesmo que, em relação ao prometido não é uma tradição cigana. Na sua opinião, é algo transversal porque até nas monarquias, por exemplo, só casavam entre si. O que acontecia na comunidade cigana era algo semelhante. E isto acontecia, em primeiro lugar, devido ao facto de os ciganos até aos dias de hoje serem considerados aqueles que não se querem integrar, os parasitas, os que não fazem nada!! Logo, os ciganos apercebendo-se disso, obviamente que para se proteger, era mais seguro casar entre ciganos. Os noivos prometidos em Portugal entre ciganos é uma nulidade. Já não é necessário, pois já não existe tanta necessidade da comunidade cigana “se esconder”.

A Guiomar é um exemplo disso: Casou aos 18 anos, num casamento sem ser prometido, mas organizado como manda a tradição. Teve presente família e amigos, muita música comida e bebida.

Nas palavras da Guiomar desfez-se logo a ideia de que os casamentos ciganos duram muitos dias. Hoje em dia duram 1 dia ou no máximo 2 dias, antigamente eram 2 ou 3 dias. Esta mudança deve-se, principalmente, ao facto de os jovens ciganos, hoje em dia, serem mais exigentes e quererem algo mais elaborado, em contraponto com os casamentos de antigamente que eram mais simples.

Outra das ideias que assola o pensamento da sociedade em geral é que a educação ao nível do ensino, no que diz respeito à comunidade cigana, muitas vezes é algo que não passa do 4ºano de escolaridade! Uma vez mais, o Francisco e a Guiomar mostraram a sua proatividade e romperam com aquilo que todos pensam! O Francisco diz que querer continuar a estudar foi algo que sempre partiu de si. A vida, no geral, e o futuro nas feiras, em particular, mostraram-lhe que é nos estudos que o futuro deverá ser feito. Quando fez a escolha de prolongar os estudos, tinha na sua mente duas coisas: não esquecer a cultura que carrega, mas também, as regras completamente diferentes das da sociedade maioritária. Em relação à aceitação dos seus pais e familiares foi um processo gradual. A aceitação começou quando se pensou que nele poderia estar um futuro diferente se passasse a barreira do 9º ano.

Na verdade, o Francisco queria estudar desporto. Estudou do 10º ao 12º ano Gestão Desportiva e a paixão por esta prática, desde sempre, foi notória. A única opção era entrar em Rio Maior, mas era longe de casa. E talvez tenha sido o melhor que lhe podia ter acontecido, – confessou – “porque há momentos onde o “Francisco-ser-cigano” prevalece sobre todos os restantes que existem em mim. Estar longe doa meus pais, os meus irmãos e os meus sobrinhos seria complicado. A proximidade familiar é algo tão característico em mim e em nós, ciganos”. Acabou por seguir Serviço Social, porque é uma área que lhe interessa bastante, pelo impacto que poderá vir a conseguir ter no futuro. O Francisco tem como objetivo ser a voz da esperança! Sente que pode ser uma ‘mais valia’ junto das ‘suas pessoas’, do seu bairro!

Por seu turno, a Guiomar fez o 4ºano e saiu com 9 anos da escola. Continuou a estudar depois de casada, altura em que fez o 6º ano, através de um Curso de Educação e Formação de Adultos (EFA), e o 9º ano através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (Sistema RVCC).

A Guiomar afirma que a palavra feminismo tem ganho lugar no seu meio. Tem direitos como qualquer outro ser humano! Mas não negam as suas dificuldades porque são mulheres e ciganas. “Temos que nos unir pelo racismo que sentimos todos os dias. Está mais que provado a nossa capacidade de resiliência ao longo dos anos. E o nosso trabalho no terreno do ativismo tem feito diferença no meio da Comunidade, mas mais nos meios sociais em geral”.

Nas palavras da Guiomar, “o papel da mulher é ingrato”, porque se casam são logo questionadas para quando os filhos; se não casam são questionadas sobre o motivo. Por isso, “a mudança temos nós que a fazer porque sabemos bem onde nos dói”! – retorquiu.

No caso da Guiomar, tem dois filhos e, o que mais deseja, é que eles tenham poder para escolherem o caminho que acharem melhor. Gostava que os filhos seguissem a tradição cigana, porque afirma mesmo que “nada tem a ver a tradição para a educação”. Deseja que sejam ciganos, com orgulho na sua história e, que sejam livres para escolher o que querem ser a nível profissional.

Já o percurso do Francisco fê-lo “distinguir-se” na sua comunidade porque, no fundo, fugiu às expectativas daquilo que era esperado por ser cigano: não cumpriu as fases vincadas no estilo de vida da etnia. Relatou que sente que muitas das responsabilidades lhe fugiram pelos dedos porque tinha na mão “uma caneta sobre um livro”.

Segundo o Francisco, a junção da cultura maioritária, com a cultura cigana é completamente compatível: “O que tento fazer é uma junção mental sempre que saio de casa. Isto porque, como faço parte da comunidade cigana de Portugal tento não ser mal visto por parte da minha comunidade cigana, pela fuga às ‘ditas-regras-normais’ e, por outro lado, procuro ao máximo enquadrar-me na sociedade, que ainda tem muito preconceito para com jovens como eu. Ou seja, concilio os rituais familiares e o orgulho que os meus mais próximos sentem por mim. E, de facto, uma mediação que é necessária e, que não depende unicamente nem de mim, nem de nós, ciganos, a partir do momento em que é em sociedade que convivemos. Mas procuro demonstrar às pessoas ciganas e não ciganas, através do meu exemplo que até temos semelhanças(como sonhos, desilusões, amor para com os que nos são queridos)”.

Caro leitor, encerro esta aprendizagem cultural, estes ensinamentos, com duas mensagens que estes jovens quiseram deixar para quem lê-se esta crónica:

“Antes de me julgares convido-te a conheceres-me. Tira as roupas do preconceito e do julgamento.  Convido-te a um café e a uma conversa amena. Vem calçar os meus sapatos e faz um pouco do meu caminho. Quero uma oportunidade porque eu mereço e vou lutar por ela! Pelo meio conhece-me e verás que somos iguais!” Guiomar Sousa

Créditos: Almeirindo Lima

“Infelizmente existe muito preconceito para com as pessoas que se assemelham a mim. Há pessoas que pensam que ser cigano é “ser-se inferior’ ou ‘ter que estar na feira’ em vez de na escola a tentar um rumo de vida e futuro diferentes. 

Às pessoas ciganas, quero deixar palavras especiais. A persistência e o foco, para mim, são duas características essenciais para conseguirmos atingir os nossos objetivos e ultrapassar as dificuldades. Se pensarmos desde modo os obstáculos são menores.

O caminho não será fácil, até porque nunca o foi. Resta persistir na nossa luta para que pouco a pouco consigamos atingir os nossos sonhos.

À sociedade como um todo quero dizer que o futuro, cada vez mais, está nos livros, ou seja, é nas páginas que se encontra a sabedoria que, juntamente com as vivências, nos fará olhar para o mundo com outros olhos.” Francisco Azul