Diário de uma gata

Hoje dormi horas e horas. Não fiz nada que me cansasse, mas achei por bem fazer uma sesta. Mas é sempre complicado, há sempre alguém a fazer barulho ou a incomodar-me de alguma maneira. Ora fazem-me festinhas na barriga (às quais respondo com arranhões) ora chamam por mim sem terem nada para me dar em troca. Estou farta.

Acordei com a mais nova a arranjar-se. Tem um mau humor que ninguém aguenta. Acorda sempre com os pés fora da cama. Ainda assim, arranja sempre maneira de me chatear. Vai para a cozinha e eu sigo-a, na esperança vã de a ver despejar comida na minha tigela. Mas ela só gosta de me atormentar. Dá-lhe gozo abrir o frigorífico à minha beira e ficar a ver-me enquanto tento encontrar uma forma de deitar as unhas ao saco do fiambre. Até hoje nunca fui capaz.

Quando ela vai embora, vou novamente para a beira da minha dona. Dorme como se não houvesse amanhã. Também não faz nada de cansativo durante o dia, mas gosta de dizer que está sempre exausta, vá-se lá entender. Quando se levanta, liga à televisão e fica a ver o programa da manhã até adormecer novamente. Só acorda quando é hora de almoçar. Ela própria admite que leva “vida de badocha”. A mim ninguém me dá nada. Chama-me de “chata” quando começo a pedinchar por um pouco de comida. Diz que não mereço, mostra-me os braços arranhados como se eu fosse fazer caso. Ela já devia ter percebido que gosto pouco que me chateiem.

Passado algum tempo, lá me dão comida. Um “paté” de carne. Não posso comer mais nada até porque já não tenho muitos dentes. Ninguém sabe como os perdi. Nem eu própria sei. Devo tê-los engolido juntamente com a comida e nem sequer reparei. Tenho a gentileza de agradecer à minha dona. Não sai da minha beira até eu começar a comer. Fica a fazer-me festas. No entanto, se lhe faço o mesmo enquanto ela está a almoçar, fica fula da vida e expulsa-me da beira dela. Humanos.

Não dou muitos passeios. Vou à varanda apanhar um bocado de sol e ver a paisagem. Quando o meu vizinho tem a janela aberta, dou ar de trapezista e vou-lhe fazer uma visita. Não tenho medo de cair; sempre ouvi dizer que os gatos têm sete vidas. Nunca me deparo com coisa boa. Ora está o meu vizinho de cuecas, ora está a mulher dele a fazer uma comida que não me inspira confiança.

Tenho andado a planear um assalto em grande ao frigorífico. Não quero fruta nem iogurtes. Estou destinada a chegar ao saquinho de fiambre de frango. Estou talhada para ter aquele pedaço de céu a derreter-se na minha língua. Mas ainda não descobri como fazê-lo. Por enquanto vou aturando esta gente que insiste em fazer-me festinhas e em falar comigo com uma voz extremamente irritante.

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso