Diários da Guerra Colonial – Segunda Parte – “A viagem – A bordo do Império”

Devo ter dormido longamente desde a partida do Cais, em Lisboa, pois quando acordei era já noite cerrada.
Viam-se as estrelas num céu escuro e luminoso, e um mar de escuridão e imensidão à nossa volta.
Tinham-me ido chamar para ir comer qualquer coisa.
Levantei-me do chão, onde havia adormecido, e fui ter com os restantes a bordo.
Ainda estávamos de rosto fechado e apreensivos. Foi um jantar silencioso comparativamente ao que depois seria hábito.
Fomos dormir em seguida.

No dia seguinte, apesar da dor que trazíamos connosco, acordámos revitalizados, e apercebi-me de que começávamos a olhar esta viagem com maior confiança e muita fé, fazendo justiça à extraordinária capacidade que o ser humano tem de resistir e tolerar a dor psíquica, como a física, e aceitar os obstáculos que a vida lhe vai colocando para os poder ultrapassar.

Durante cerca de vinte dias a navegar, rumo a Lourenço Marques (Maputo), donde depois o destacamento seguiria por terra para a Beira, também em Moçambique, o navio iria fazer algumas paragens, por se tratar de um navio com rota comercial.
Primeira paragem no Funchal, Madeira.
A maravilhosa imagem desta ilha, de imensurável beleza, e que ficou para sempre na minha memória, foi a de um Presépio gigantesco, daquele género de Presépio com figuras pequenas, tipicamente português, repleto de musgo verde e casas coloridas em tons de branco e vermelho.

Quando o paquete Império retomou o seu rumo, deixando a ilha da Madeira, era novamente noite, e as luzes que se acendiam em terra tornavam-na ainda mais bela, lembrando o conforto dos lares e o aconchego dos que amamos, cada vez mais distantes de nós, intensificando a saudade.
Depois de navegar em alto mar durante dias, o Império chegou a São Tomé.
Sem lugar para atracar no Porto, ficámos ao largo.

Eu, tal como outros, entrei numa lancha e fui a terra. Tinha um amigo à minha espera.
As poucas horas que passei na ilha permitiram-me dar um passeio de carro e conhecê-la um pouco melhor.
Foi bom encontrar alguém conhecido e abstrair-me um pouco da viagem e daquilo ao que ia.
Voltei para bordo à hora prevista e a viagem prosseguiu rumo a Angola.
Quando chegámos a Luanda o Império atracou.
Aqui muitos civis desceram para ficar, de regresso a casa.
Desci também para ir ao encontro de um grande amigo meu.
Eu era, dentre os que cumpriam serviço militar obrigatório e tinham sido mobilizados para terras de além mar, designadas por Ultramar naquela época, um dos mais novos, ainda com vinte anos.
O meu amigo tinha pouco mais do que a minha idade e tinha sido mobilizado pouco tempo antes para Angola.
Estava no momento em Luanda, e aguardava a minha chegada. Trazia uma encomenda para ele.
Cada encomenda que chegava às mãos de quem estava em comissão, trazia com ela não apenas o conteúdo, mas o calor afectuoso daquele abraço que chegava até nós, vindo de casa.

Por momentos, em terra firme, numa cidade como Luanda, esqueci-me que não muito tempo depois estaria em solos tórridos e húmidos, debaixo de temperaturas tropicais e sujeito a uma panóplia de doenças que as acompanham, tomando banho em rios selvagens, e dormitando de quando em vez, em pleno mato, em terras moçambicanas.

Rodeado estaria em breve por olhos que se escondem durante a luz do Sol, e nos atacam no acampamento durante a noite, sem dó nem piedade, fazendo rolar granadas pelos solos rasgados no silêncio, com rajadas de dor incessante onde tudo o que mexe morre.
É o lado da guerra que não se vê de fora, só se vê de dentro.
Não é uma memória que se queira guardar.

Aquele lado profundamente desconhecido por todos os que vão falando da guerra sem nunca a terem olhado olhos nos olhos, nem terem visto a sua vida, ou as dos seus, arrancadas, para ali serem obrigados a lutar por ela.
Em breve estaria no terreno, operador cripto integrante de um Batalhão de Caçadores de uma determinada Companhia de Caçadores, em pleno mato, em Luatize, Moçambique, acampado no meio do nada, rodeado pelo inimigo.
Tínhamos as nossas vidas a prazo, um prazo mais longo, ou mais curto, consoante o quisesse o destino.
No meio de tudo isto tentaria concentrar-me todos os dias na parte boa da experiência (tinha de haver alguma).
Ou isso ou deixava ali a minha vida, mesmo que não morresse…
Aprenderia a estar e a amar a beleza de África, mesmo em solo traiçoeiro e letal para muitos de nós.
Iria aprender a amar como família, e sem nunca esquecer a minha que, embora longe, era âncora firme que me dava alento e força, os meus “irmãos de armas”, as gentes locais, nativos, que nos devolviam largo afecto na grande maioria dos casos, longe de perceberem, ou mesmo de quererem perceber, a guerra e os seus contornos políticos.
Aprenderia a usar também toda uma nova linguagem, algumas palavras que depois nunca mais foram utilizadas por terem no seu âmago a marca do colonialismo: metrópole, palavra usada em terras africanas para designar a minha Lisboa; turras, que era o nome depreciativo, sinónimo de teimoso ou de quem faz “birra”, que era dado por grande parte dos portugueses aos combatentes independentistas, sobretudo pelos que estavam em terreno de guerra.

No terreno eram eles o nosso inimigo, em boa verdade, ainda que eles tivessem uma Causa, e nós apenas estivéssemos a cumprir o serviço militar obrigatório, contra a nossa vontade, também subjugados ao Regime, ainda mais do que eles.
Também aprendi a usar outras palavras, sem que elas tivessem esta conotação colonialista, antes com um doce tom alegre, porque África também tinha um colorido de afectos e de culturas, como por exemplo “Mato”, que era afinal muito mais do que uma forma de um verbo triste, à excepção de quando se mata a sede ou a saudade, ou um local de densa vegetação sem condições mínimas para se estar, onde muitas vezes estavam localizados os nossos acampamentos durante largos meses. “Mato” significaria “muito”… Porque “chuva é mato”, se chove muito, como aliás é comum nestas regiões do Hemisfério Sul, a partir de Março, mesmo quando faz calor.

Antes de tudo isto, no entanto, por umas horas que eram o Agora, abraçava o amigo que me esperava, em Luanda.
E que bom era revê-lo e encontrá-lo bem!
Aquele fraterno abraço invocava as memórias de infância partilhada, as ruas vestidas de pedra onde jogávamos à bola, os eléctricos onde nos pendurávamos para viajar por Lisboa, as corridas para casa, desde o Tejo até lá acima, para irmos almoçar.
A encomenda… Sim, trouxe-a comigo.

Dei-lhe o pacote que vinha comigo desde Lisboa, enviado pelos seus familiares, com cheiro de saudade e sabor a lar.
Outro abraço, desta vez mais sentido.
Um forte abraço de despedida…
Não sabíamos se nos íamos voltar a ver.

De regresso ao paquete, fizemos mais duas paragens em portos angolanos:
Nova Lisboa (Huambo – sua designação desde a sua fundação em 1912 até 1928 e novamente a partir de 1975) – Esta cidade recordava-me tanto de Lisboa pelas suas fachadas e aspecto geral, que me deixou de coração bem apertado…
Moçâmedes (designada por Namibe actualmente, e desde 1985)– Aqui, bem próximo do deserto para onde se levavam alguns prisioneiros, vi moscas de tamanho surpreendente para um insecto… Também os caranguejos eram enormes e a preços escandalosamente baixos. Pequenas trivialidades que nos dão conta de outras realidades, e nos afastam o pensamento da guerra que nos espera.
Deixámos Angola, e, durante a noite, navegámos até à Cidade do Cabo, na África do Sul.
O Império ficou ao largo.
Aqui a confluência do Oceano Atlântico com o Oceano Índico fazia-se notar a bordo sob a forma de ondas gigantescas que jamais esqueci… Vagas que oscilavam o navio de forma tão óbvia que muitos enjoavam pelo balançar constante e atordoante da plataforma.
Não enjoei. Nem me fez qualquer diferença na verdade.
Preferia concentrar-me em olhar as vagas e aquela junção dos dois oceanos, reveladoras da força e do poder da natureza, aliviando outros pensamentos, que me deixariam triste ou apreensivo, relativos ao antes ou ao depois.
Sempre gostei da vida a bordo, e dediquei grande parte da minha vida, mais tarde, ao sector marítimo.
Nem mesmo esta viagem me retirou essa ligação ao mar e à navegação.

Juntei-me ao grupo que continuava a fazer as refeições com alguma vontade, composto por alguns dos meus camaradas, militares, pela tripulação, e um ou outro civil.
Quando se obteve lugar para atracar no porto, não pudemos sair do navio.
Medidas de segurança relativa às vacinas, ou à falta delas.
Pelo menos foi o que nos disseram.
Ocultava-se muita coisa naquela época, e então a nós, jovens militares a cumprir serviço, ainda menos nos era dito.

Achei estranho termos tantas vacinas acrescentadas aos nossos Boletins, administradas um ou dois meses antes do embarque, e ainda assim haver este condicionamento…
Talvez fosse verdade, talvez não.
Talvez tivessem receio de que alguns de nós pudessem escapar, ao que se chama neste contexto “desertar”, aproveitando estar em solo não português. Não sei.
Facto é que não nos deixaram sair, alegando a questão dos Boletins de vacinas. Se nos disseram a verdade ou não, nunca soube.
Enfim, ficámos ao largo da Cidade do Cabo, e no dia seguinte chegávamos finalmente a Lourenço Marques (designada enquanto Maputo desde 1976 e até ao presente), capital de Moçambique, assinalando o fim da minha viagem a bordo do Império.

O paquete Império (1948), onde viajei rumo ao meu inferno, que foi o inferno e o fim de tantos jovens como eu, a guerra colonial, era um paquete gémeo de outro de seu nome Pátria (1947), que juntamente com um outro paquete de nome Uige (1954) – este último o único deles com motor diesel, pois os outros eram propulsionados por turbinas a vapor – e ainda com mais dois dos maiores paquetes naquela época, também propriedade da CCN (Companhia Colonial de Navegação), o Vera Cruz (1952) e o Infante Dom Henrique (1961), faziam regularmente a carreira de África.

Um outro navio da CCN, também de grandes dimensões, o Santa Maria (1952), estava reservado para as viagens transatlânticas, rumo sobretudo à América do Sul, mas também à América do Norte e à América Central.
Este paquete, o Santa Maria, ficou conhecido por ter sido sequestrado em 22 de Janeiro de 1961, com seiscentos passageiros a bordo, ao largo das Caraíbas, quando navegava do porto de Curaçao para Miami.

Os sequestradores eram um grupo de portugueses e espanhóis pertencentes à DRIL – Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, que eram opositores políticos ao Regime de Salazar e de Franco, sob o comando do capitão Henrique Galvão.
Durante o sequestro morreu o oficial João José Nascimento Costa.
O navio acabou por fundear no porto do Recife, no Brasil, a 2 de Fevereiro, sendo boicotadas as intenções dos sequestradores quase por completo, excepto no que se refere ao golpe publicitário contra Salazar, que deixava adivinhar a “brecha” no sistema e um novo tempo de maior fragilidade no Regime, deitando por terra a ideia de invulnerabilidade que tinha sido construída e transmitida ao povo, ao longo do tempo.
O sequestro ficou conhecido por ser o primeiro sequestro de um transatlântico na história contemporânea.

Os paquetes que viajavam de Lisboa para África não sofreriam incidentes com esta dimensão.
Neles foram transportados milhares de jovens saudosos, para cumprir o tempo de serviço militar obrigatório em cenário de guerra.
Eu fui um deles, entre milhares.
Vinte e quatro meses era o tempo que me restava até ao fim da comissão.
O navio em que viajei, o Império, foi desmantelado em 1974.

Por uma triste ironia da vida, viveu mais tempo do que alguns dos jovens que transportou…
As viagens decorreram quase sempre com normalidade, sendo no entanto de assinalar que em Janeiro do ano em que eu próprio viajei, 1970, cerca de dois meses antes do meu embarque, o Império registou um incidente, que durante anos não foi clarificado nem explicado aos muitos que nele viajavam à data.

Confirmou-se posteriormente que tinham sido colocados explosivos junto ao casco, por baixo da Casa das Máquinas, provavelmente antes da partida de Lisboa, e cujo rebentamento provocara danos – um rombo no casco – o que provocou a entrada de água indevida na embarcação, fazendo com que a Casa das Máquinas ficasse submersa.
Os jovens militares, que nele viajavam, foram depois transportados pelo Niassa, desde Cabo Verde até Moçambique, tanto quanto soube, muito tempo depois disto ter ocorrido.
Não lhes foram dadas mais explicações na altura sobre o incidente ocorrido.

Percebi mais tarde que, quando embarquei no Império, nesta viagem que aqui descrevo, tratava-se da viagem imediatamente a seguir a esta, onde houve este incidente, no sentido de Lisboa para Moçambique.
Não parámos na Guiné nem em Cabo Verde.
Por entre lágrimas e dores, cientes dos perigos que corríamos em terreno hostil, nem desconfiávamos que um incidente deste tipo, se não fosse detectado e controlado a tempo, nos podia fazer perder a vida, ainda a bordo, numa viagem aparentemente segura, onde civis e jovens mobilizados não faziam a menor ideia de que o perigo existia desde o momento em que saíamos do Cais da Rocha.
Estávamos em guerra. E nunca a tinha sentido tão real como agora.

O Regime escondia de nós tudo o que nos fizesse suspeitar de que a sua queda estaria para breve, mantendo-nos a todos sob controlo.
Cheguei a Moçambique vinte dias depois de ter embarcado no Império e nunca mais viajei neste paquete.
Dele, e desta viagem, guardei para mim a mais presente memória, como certamente o fizeram tantos outros jovens da época, os que sobreviveram, e as suas famílias.
Algumas famílias iriam dolorosamente recordar esse dia como o último em que viram os seus jovens rapazes com vida…
Quis o destino que fosse um dos que regressaram a casa, são e salvo, assistindo cerca de um ano depois à queda do Regime que para ali me havia atirado.
As memórias desse tempo, no entanto, ficaram gravadas para sempre, e é sobre elas que ainda tenho umas linhas, poucas, para escrever…
As vivências da guerra ficam connosco para sempre…
África nunca se esquece.