Discurso da Melga-Raínha

Fiéis súbditas,

Penso que sabem o motivo pelo qual solicitei que nos reuníssemos todas aqui hoje: chegou oficialmente o Verão. Sim, sim, eu sei que este ano já vos disse isto quatro vezes e depois afinal não era Verão e os dias seguintes foram frios e chuvosos. Mas desta vez tenho quase a certeza. Eu esperei uma semana para me certificar de que não eram só uns dias solarengos passageiros, pois também eu não quero que se repitam as baixas avultadas que sofremos nessas quatro ocasiões. Peço um minuto de silêncio por todas as nossas companheiras que foram assassinadas pela chuva inesperada.

Bem, e agora que chegou o Verão, posso finalmente fazer a declaração que todas aguardávamos há cerca de nove meses: está oficialmente aberta a época de caça ao humano!!! Pronto, pronto, acalmem-se. É bonito ver o vosso entusiasmo, mas eu ainda tenho de discutir alguns assuntos com vocês.

Antes de mais, estive a analisar e comparar os números do ano passado, referentes à quantidade de sangue humano ingerida pelos vários grupos de animais hematófagos, e deixem-me que vos diga que fiquei desiludida. Já é habitual ficarmos atrás dos mosquitos – todas sabemos que eles são mais, não têm problema em voar de dia e trabalham o ano inteiro – agora o que não é normal é as pulgas e carraças terem ficado à nossa frente. Mais grave ainda: não só perdemos o segundo lugar como ficámos quase ao nível das sanguessugas. Das sanguessugas!!! Um animal hermafrodita que mal se mexe para caçar!

Esta humilhação não se pode voltar a repetir. E se o ano passado foi um fracasso e tínhamos um elevado número de operacionais activas, este ano vai ser ainda mais complicado com todas as baixas que sofremos por causa da chuva. Assim sendo, para evitar mais baixas desnecessárias e tentar melhorar a nossa competitividade, resolvi rever alguns dos princípios fundamentais da nossa actividade. Ouçam com atenção, por favor.

Em primeiro lugar, evitem poisar em paredes brancas. Não sei se todas têm consciência disto, mas nós temos uma cor escura que contrasta com o branco da parede, o que nos torna facilmente visíveis para os humanos. É um erro básico que não pode acontecer.

Segundo: ataquem apenas durante o sono. Não se armem em heroínas e se ponham a espicaçar os humanos enquanto eles andam lá nas actividades deles. Eu sei que é muito divertido gozar com eles, mas não os subestimem. Lembrem-se que os humanos têm incorporadas duas armas que servem para nos esmagar, aquilo a que eles chamam “mãos”. Por isso, esperem sempre até que eles se deitem e adormeçam. E se por acaso eles demorarem a adormecer, utilizem o nosso zumbido natural para os desgastar até ao ponto em que eles já não aguentam mais. Nessa altura, é seguro atacar.

Terceiro: não sejam demasiado gulosas. Bebam apenas uma quantidade de sangue que vos permita fugir se for necessário. Lembrem-se do velho ditado: “Melga que fica obesa, passa de predador a presa”.

E agora, atenção, que isto é importante: muito cuidado com a escolha das vossas vítimas. Antes de decidirem sugar o sangue, observem como a vítima se está a comportar. Isto é especialmente relevante para todas vocês que foram destacadas para os festivais de verão. Acho que todas aqui nos lembramos o que aconteceu à Helga em 2009. Para os novatos, deixem-me contar: a Helga tinha sido destacada para o Boom Festival e decidiu ignorar este princípio, atacando um humano que se estava a abanar freneticamente e a imitar um pássaro. Pouco tempo depois, a Helga começou a voar de forma desordenada, disse que tinha sido um golfinho na vida anterior e atirou-se em direcção a um rio. Não se sabe ao certo o que provocou isto, mas o que aprendemos é que não devemos atacar humanos que se estejam a mexer de forma estranha ou que usem óculos escuros à noite.

Finalmente, e como nunca se sabe, acho melhor deixar-vos também este conselho: cuidado com a chuva.

Agora vão, fiéis súbditas, e nos próximos três meses suguem tanto sangue quando puderem e enlouqueçam o máximo de humanos que conseguirem! Mantenham sempre em mente que não fazemos isto apenas pela nossa sobrevivência, mas também por algo mágico e místico, algo muito maior do que nós: as lâmpadas!!!

Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia 

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