A distância, a estátua do Saramago e a grandeza que há em ser simples. – João Nogueira

Distância. Uma linha recta. Eu numa ponta. Tu noutra. No meio, os dias em que não te vejo. Que não te beijo.

São muitos. Dias a mais. Têm setenta e sete horas cada um.

Quando o amor é longe, não há remédio. Há que agradecer, porque há amor. Longe, mas amor.

Insulto cada um dos trezentos quilómetros que nos separam. Um por um. Do Porto a Lisboa. Cansa. Aborrece. Obriga-te a ter uma grande base de palavrões. De calão. Mas eu insulto.

A distância não aumenta o amor. Nem o diminui. É o que é. Muita coisa ao mesmo tempo. Ora alegria, ora angústia. Ora hora de chegar. Ora hora de partir.

Tenho medo das partidas. Aliás, tenho mais medo de pensar que vou partir, do que quando parto, de facto. É noite, sempre. Está frio. Lá fora e cá dentro. Esfrego as mãos, mas nunca cheguem a aquecer. A mala pesa muito. Uns gramas de roupa. Quilogramas de medo.

Na gare, outros como eu. Já nos conhecemos. Mesmo sem nunca nos falarmos. Temos  código morse nos olhos. Que olham todos da mesma forma. O amor devia ser perto, caramba. Ali, à mão de semear. Devia ser já ali ao pé. Ali à beira. Mas não. É longe. Tem muitos apeadeiros.

E quando é longe, aguentas-te. Como um homem. Que remédio!

O tempo não passa. É sempre segunda-feira. Terça, às vezes. É igual.

Das poucas vezes em que a vida me dá o sábado, deixa de ser vida. Passa a ser sonho. Que acaba mal começa. Na parte melhor. Para passar a ser vida outra vez.

Não acredito no destino, como tu. Dizes que Deus me pôs no teu caminho. No momento em que mais precisaste. No momento em que mais precisei. Digo-te que não. Dizes que sim. Que ninguém pode ser ateu, quando lhe corre um Deus dentro. Chamas-me anjo da guarda, às vezes. Digo-te que não. Dizes que sim. Que ninguém pode ser ateu quando salva alguém. E quando se deixa salvar. Digo-te que não.

A distância são dias, não são quilómetros. Nem milhas. Não são curvas, contracurvas e portagens. São dias. E noites. Conto-as. Todas. Viro-me para um lado. A seguir para o outro. Não estás. Em mim há silêncio. E guerra. Ao mesmo tempo.

A distância é aborrecida. A vida deve ser todos os dias. Não pode ser só quando calha.

Deve ser como em Agosto, na Azinhaga. Um sítio minúsculo. Mas só em tamanho. Fui lá só tirar uma fotografia à estátua do Saramago. Uma coisa rápida, dois minutos. Ria-me para a objectiva, abraçado à estátua, quando uma voz grossa me ofereceu cerveja. Uma dúzia de velhinhos, uma taberna e muitas garrafas. Gritaram. Obrigaram-me a beber com eles. Todos. Quiseram falar da vida. Da deles e da minha. Só! Perguntaram-me pela minha terra. Um falou-me do Porto. Que disse conhecer como a palma da mão, embora nunca tivesse ouvido falar da Avenida dos Aliados nem da Torre dos Clérigos. Outro, o electricista, disse-me que eu tinha uma arte muito bonita. A de professor. Falou-me da antiga professora com lágrimas nos olhos. Com saudades. Chamava-lhe a falecida D. Isaurinha. Ao mesmo tempo que me falava da bondade da senhora, da santa que ela era, mostrava-me a marca de uma reguada que nunca mais saiu. Disse, também, que era graças a ela que ainda hoje é conhecido como o “parolo do canhoto que nunca mais aprende a ler”. E que isso é coisa que não se esquece e que cai sempre bem a um indivíduo.

Outro senhor, sobrinho do Saramago, proprietário da taberna, perguntou-me qual era o interesse em tirar uma fotografia com a estátua de um comuna. Disse-lhe que o tio tinha sido muito mais do que só comunista. Ele concordou. Disse que também era óptimo a escrever disparates. Discordei. Ele disse que, do tio, só tinha gostado dos Lusíadas. Achei melhor mudar de assunto!

Nesse dia, marimbei-me para o teor da conversa. À minha frente, gente. Gente com vontade de falar. E de escutar. Com vontade de sorrir. E de rir. Sorrisos bonitos, mesmo sem molares e incisivos, porque o sorriso está nos olhos. Gente com vontade de partilhar. Nem que fossem histórias mal contadas. Histórias com mulheres que, de certeza, nunca tiveram e a quem nunca fizeram isto nem aquilo. Histórias que não eram bem assim. Ou mesmo nada assim. Mas não faz mal.

Nesse dia, cheguei à Azinhaga às duas da tarde. O objectivo era sair de lá às duas e um. Saí às seis e meia. Não me deixaram vir embora. Diziam sempre que era a última cerveja. Aliás, pagaram-me sete últimas cervejas. A primeira última cerveja começou às quatro e vinte cinco. Na despedida, trocámos abraços. Mãos pesadas a baterem-me nas costas. Que eram um coração a andar a mil. Uma fila indiana de velhinhos à espera para me abraçar. A mim e ao Nico. Outro amigo de longe.

As coisas boas são sempre simples. Só são grandes porque são simples. Aparecem do nada. Que é onde nasce o tudo.

A distância consome. Mói. Mas quando o amor é longe, não há remédio. Há que agradecer, porque há amor.

Longe, mas amor.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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